CUOTIDIANO

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Resolvi espreitar o que escrevias

Em tempos resolvi espreitar o que escrevias. E - nem sei porquê - sentia que cada frase tua me era dirigida. Melhor, até sei – porque, apenas e só, me sabia bem pensar que assim era, dando-me um estranho gozo adolescente essa sensação.

Uns tempos depois resolvi espreitar o que vestias. E - nem sei porquê - achei sempre que havias escolhido cada peça para mim, por mim, só para me agradar, para que fosses flor em cada vez que chovia – provavelmente era apenas o meu feitio de adolescente retardatário a atacar de novo.

Mais tarde espreitei o que despias. Depois amei-te e amámo-nos depressa, em noites sem cansaço e em manhãs nunca tardias. Depois ainda, e continuando sem saber porquê, lentamente me fui esquecendo de ti - enquanto te ias tornando real, com escova de dentes e espaço a menos e roupa suja e tudo o mais que vem com a pessoa que se ama, sogra incluída.

Depois depois ainda, aos poucos e poucos, sem dar por isso e sem de novo saber porquê, deixei de te ver, por mais palavras que dissesses ou escrevesses, por mais despida que estivesses ou quisesses.

Hoje? Hoje limito-me a espreitar outra vez o que escreves, enquanto vestes e despes as capas com que não me deixas ver-te.

Era apenas isto que tinha para te dizer.

Adeus.

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segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Os sapos são do caraças!

Nesse dia acordou mais cedo, tinha algo de importante a fazer antes do trabalho. Levantou-se, dirigiu-se à casa de banho, de caminho gritou “Vive la France!” – como sempre faz quando vai à casa de banho -, higiene matinal, pequeno-almoço e lá saiu, apressado, de casa. Cruzou-se com a vizinha do 5º andar - que também gritava “Vive la France!” mas (vejam bem a falta de maneiras!) sempre antes do almoço -, disse “bom dia” à porteira que lhe respondeu com um arroto extremamente afável (roçando quase o “muito giro”) e ei-lo na rua a correr para a paragem.

Apanhou o autocarro, dirigindo-se à loja dos sapos deprimidos. Tentou comprar um mas, naquele dia, o único disponível tinha apenas um ligeiríssimo complexo de Édipo, o que não o tornava suficientemente deprimido. Não servia, portanto. Tentou a loja dos sapos apenas tristes. “Sabe, morreu-me há pouco uma avestruz asfixiada na areia; ando muito necessitado de uma companhia verdadeiramente solidária”. O vendedor não se comoveu, habituado que estava a toda aquela tristeza batráquia. “Acabámos de receber um carregamento excepcional, quer vir ver?”

Feliz, saiu da loja com o seu novo amigo que, obviamente, chorava lágrimas lacustres. Que contentamento, que bem-estar e tranquilidade isso lhe transmitia!

Chegou ao escritório. Orgulhoso, mostrou a todos o sapo - que continuava a chorar, claro, só que mais ligeiramente. “Tu queres ver que se lhe estão a acabar as pilhas?”, pensou.

Estava ele nestas conjecturas quando, saltando selvática e fogosamente por detrás de uma fotocopiadora, surgiu o chefe e comeu-o. Ficou tudo boquiaberto. Incluindo o próprio chefe.

Claro está que, ao ver toda aquela cena, o sapo cuspiu o Prozac e desatou a rir. Até duas horas e meia depois (mais ou menos). É o tempo que dura o efeito do humano engolido, evidentemente.

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quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Dia de S. Valentim

Saía de uma, entrava noutra. Saía de outra, entrava noutra ainda. Hesitava. Pensava mais um pouco (“não posso errar na escolha!”). Mas continuava indeciso. Por isso voltava outra vez à carga. Finalmente, já quase exausto, decidiu-se - era à Amanda que iria oferecer o finíssimo “Channel nº5“ há muito comprado para esse dia.

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terça-feira, fevereiro 13, 2007

Uma boa ideia

Segundo o “Público” de hoje, “a Coreia do Norte concordou em desmantelar o seu programa nuclear em troco de um reforço de ajuda energética”. Esse reforço irá ser de 8.550 milhões de dólares em electricidade durante 10 anos, acrescidos de 600 milhões de dólares anuais em fuel óleo.

Ora aí está a boa ideia que nos faltava para conseguir a resolução dos nossos problemas – ameaçamos que Portugal irá desenvolver centrais nucleares a partir de bifanas de porco preto, pomos já a primeira perna e só pararemos esse ambicioso projecto exigindo em troca:

- O total perdão do déficit;
- A abolição da TVI;
- Um 1º lugar no euromilhões para cada português;
- O abate do Rui Reininho;
- Sermos todos promovidos a “professor Marcelo”.

Ah grande Kim Jong-il!


PS – Como deve estar arrependida a Coreia do Sul de ser tão amiguinha dos norte-americanos – é que, assim, não recebeu ajudinha (ao contrário do seu pérfido vizinho, o tal do “bushiano eixo do mal”...). Já agora, será o Irão o próximo beneficiado?

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sábado, fevereiro 10, 2007

O Referendo

Após muita luta parlamentar, pouca luta corpo a corpo e nenhuma luta de cães, José Sócrates, por forma a calar os adversários que o acusavam de não cumprir as promessas eleitorais, resolveu cumprir uma não-promessa eleitoral – o referendo à IMM. E é já amanhã, 10 de Fevereiro de 2008, que tudo se irá decidir.

Na semana passada, na Assembleia da República, os partidos manifestaram-se:

- O CDS argumentou que deveria ser obrigatória a interrupção, pois havendo milhões de vidas em jogo, seria um perigo para a sociedade a manutenção do actual estado de coisas, tanto mais que livre arbítrio só por vontade de Deus;
- O PSD deixou à consciência de cada um, não sem antes alertar que estaria contra a posição do PS, fosse ela qual fosse;
- O PS disse qualquer coisa só para fingir que não é tudo clone do Sócrates. Enigmaticamente, Manuel Alegre esboçou um sorriso, sendo logo mal interpretado pelos malandros dos jornalistas que afirmaram tratar-se de uma dor de rim ou de uma colagem ao espírito de Gioconda antes da higiene matinal;
- O PCP reafirmou que, do mesmo modo que os obesos comunistas, quando pressionados pelo outro PCP (o PCP/Fitness, mais conhecido por “Partido do Colesterol Português”) argumentam que “na minha barriga mando eu!”, aqui também há que respeitar os homens e as suas decisões mais íntimas;
- O Bloco de Esquerda gritou que se a interrupção passasse a ser obrigatória, logo se desenvolveriam perigosas crises maníacas e de ansiedade que, por sua vez, conduziriam à insanidade e ao caos social - claro que, em última instância, se iria assistir ao aumento da exploração e do lucro do grande capital. Para além disso, também propôs um parque eólico dentro da própria Assembleia.

Fora do Parlamento, dos restantes 9.999.699 portugueses, 9.999.698 estão-se nas tintas, o que irá trazer para Portugal mais um belo recorde (para além dos outros todos já mais que gastos e relacionados com o nosso crónico atraso económico e social) - o da abstenção. O restante português, Marcelo Rebelo de Sousa (um “grande português”, infamemente injustiçado pelo programa de nome similar, ao qual o professor dá nota 7) é contra a pergunta, seja ela qual for, mantendo a coerência com o seu próprio partido.

Ah, é verdade, a pergunta:
“Concorda que seja obrigatória a Interrupção da Masturbação Masculina se efectuada nos primeiros 10 segundos em casa de banho bem lavadinha?”

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quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Os 5 no Jardim

Através do "Publico" de segunda-feira passada, citando o Tribunal de Contas, ficámos a saber que:
- 5 milhões de euros (correspondentes a três quartos do total dos apoios à comunicação social da região) foi quanto o governo jardineiro gastou no financiamento ao único jornal estatizado do país, o "Jornal da Madeira" - onde, curiosamente e apenas por coincidência, o ditadorzeco regional escreve uma página de opinião quase todos os dias;
- 5 mil cópias é a fantástica tiragem do dito jornal;
- 5 vezes mais do que o preço de capa (!) é o valor do subsídio jardinesco; ou seja, por cada jornal vendido, Jardim oferece o preço de outros 5!
O Tribunal de Contas conclui que tem "dúvidas quanto às finalidades a prosseguir com a transferência de verbas". Eu não.

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sábado, fevereiro 03, 2007

No elevador

Há séculos que andava para escrever sobre elevadores, aquele estranho local em que nos sentimos compelidos a dizer qualquer coisa a alguém que não conhecemos de lado nenhum mas, sabe-se lá porquê – porque o espaço aperta? porque nos sentimos obrigados a sentir proximidades com os outros ? -, vá de falar do tempo ou, em alternativa, fingir que se conferem as mensagens de telemóvel. Aliás, acho que o melhor dos telemóveis não é terem sons histericofónicos ou televisão, não é poderem servir para estrelar ovos ou, sequer (e há alguns - os topos de gama – que até o fazem!), terem a capacidade de fazer chamadas telefónicas - o melhor, mesmo, é serem elevador-friendly.

Bom, mas hoje tudo foi diferente do habitual. Quando entrei no elevador já lá estava alguém, vindo de outro andar qualquer. Cautelosamente alinhavei o telemóvel para o que desse e viesse - não fosse o tema “tempo” esgotar-se em três ou quatro andares - e, no momento em que ia começar o meu ritual de falsas mensagens, reparei que o personagem da história que eu posteriormente poderia escrever, afinal, era uma mulher real, carne e osso, trinta e tais, olhos vermelhos de choro (de raiva? de dor?), perdida num corpo escondido, por momentos, por detrás dos clinex.

Com o tempo parado e ao ritmo de três lágrimas por andar, lá chegámos ao rés-do-chão. Abri-lhe a porta, ofereci-lhe um sorriso solidário, ela tentou esboçar um outro de volta e saiu rua fora, perdendo-se pelos céus incertos da noite – sem, sequer, ser conduzida para nenhum lugar por nenhuma estrela, muito menos daquelas provindas das histórias infantis e que inventam caminhos, nem que seja pelo simples facto de brilharem por dentro de nós.



Confissão: vim para casa escrever tudo isto só para fazer tempo, enquanto espero uma chamada dela no meu telemóvel. Ah, é verdade, amanhã vai chover.

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quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Choveu muito? Olhe que não... (o artigo que o director do DN não quis publicar)

O copo avançou mesa fora e, mesmo à beirinha, hesitou. Mas farto da sua reles condição de baratucho do Continente e frustrado por não ser um flute para champanhe, atirou-se, estilhaçando-se no chão; em suma, “o copo partiu-se”. Evidentemente, ninguém o empurrou – suicidou-se...

Invariavelmente também, sempre que protestamos na EDP por ter recebido uma dupla facturação, a resposta é “o computador enganou-se” – claro que ninguém criou o software, ninguém introduziu dados. Por outras palavras, culpa-se o que não pode responder de volta (quem cala, consente...) - como sempre, a desresponsabilização total.

Vem tudo isto a propósito das inundações que assolaram o nosso país em Novembro passado, a nível quer de zonas interiores - essencialmente com problemas de saneamento pluvial - quer ribeirinhas, com transbordamentos não controlados. Claro que a razão apontada foi a habitual: “choveu muito...”. Mas “muito” comparado com quê? Falemos, então, de comparações.

Se compararmos os valores da precipitação ocorrida em Portugal neste Outono (Setembro a Novembro) com os médios para a mesma altura observam-se, de facto, registos mais elevados, tendo este sido o mais chuvoso dos últimos 42 anos, com um valor 180% superior à média. Por exemplo, em Lisboa, foi o segundo mais chuvoso desde 1901.

Mas de modo a saber-se qual é o verdadeiro culpado pelos problemas a que assistimos ao vivo, nos jornais e na televisão, a comparação a efectuar não deverá ser essa, mas sim entre os valores da precipitação ocorrida e os que, legal e regulamentarmente, terão sido adoptados nos projectos que deram origem às obras de saneamento e de regularização fluvial – isto já para não falar dos “não-projectos” e das “não-obras”. Fazendo essa comparação utilizando as precipitações máximas ocorridas na região de Lisboa (a título exemplificativo) no passado Outono, verifica-se que:

- Em termos de colectores, com durações de chuvada de 10 e 20 minutos (críticas para dimensionamento) atingiu-se, respectivamente, 75% e 91% do valor regulamentar;
- Em relação a ribeiras, para períodos inferiores a 1 hora, o máximo foi de 64% do determinado legalmente; para superiores, foi sempre inferior a 50%.

Assim, constata-se que a culpa não é da “coitada” da Natureza, a suspeita do costume; houve foi decisões mal (ou não) tomadas, projectos mal elaborados e obras mal construídas. Ou seja, não “choveu muito”, o ser humano é que meteu água.

Então mas, afinal, quais foram as verdadeiras causas? Referindo apenas algumas:
- a desregrada ocupação do solo consequência, entre outros, do peso da construção civil nas autarquias e de deficiente ou não cumprido planeamento urbanístico;
- a falta de limpeza e manutenção, constatável no assoreamento e no lixo acumulado em leitos e margens, resultado do não cumprimento da lei, da inexistência de acções fiscalizadoras e da falta de vontade política e de meios materiais e humanos para a fazer cumprir;
- a má concepção e/ou o sub-dimensionamento de obras, verificável, por exemplo, em colectores e passagens hidráulicas que obstruem o escoamento, fruto de obscuros ou inexistentes licenciamentos e de incompetentes intervenções por parte, inclusive, de entidades oficiais;
- finalmente, as descargas das barragens, função da gestão das bacias hidrográficas, ponderada com os interesses energéticos em jogo.
Como facilmente se percebe, em todas estas causas está a mão humana e não a Mãe Natureza.

Em conclusão, giramos adequadamente os nossos sistemas hídricos e olhemos para a Natureza como aliada e não como a causadora dos nossos males - não nos esqueçamos que a verdade inconveniente é que o que se passa é precisamente o inverso.

PS - Durante o Governo Guterres e após graves inundações na altura ocorridas, a deputada socialista Maria do Céu Lourenço dizia, na Assembleia da República, que "as alterações climatéricas derivadas do efeito estufa provocaram uma situação anormal, impensável e imprevisível de intempérie, sendo essa e não outra a verdadeira razão dos prejuízos verificados no Baixo Mondego em particular e no País em geral". Mais extraordinário ainda: "lançar acusações contra o Governo, nesta matéria, para lá de caricato, é pura demagogia e corresponde a uma forma inaceitável de fazer política". Lindo!
PPS - Será que o director do DN concorda com os disparates acima citados? ou, por outro lado, será que também não quer "ver" as verdades que não dão jeito ao poder instalado?