O copo avançou mesa fora e, mesmo à beirinha, hesitou. Mas farto da sua reles condição de baratucho do Continente e frustrado por não ser um flute para champanhe, atirou-se, estilhaçando-se no chão; em suma, “o copo partiu-se”. Evidentemente, ninguém o empurrou – suicidou-se...
Invariavelmente também, sempre que protestamos na EDP por ter recebido uma dupla facturação, a resposta é “o computador enganou-se” – claro que ninguém criou o software, ninguém introduziu dados. Por outras palavras, culpa-se o que não pode responder de volta (quem cala, consente...) - como sempre, a desresponsabilização total.
Vem tudo isto a propósito das inundações que assolaram o nosso país em Novembro passado, a nível quer de zonas interiores - essencialmente com problemas de saneamento pluvial - quer ribeirinhas, com transbordamentos não controlados. Claro que a razão apontada foi a habitual: “choveu muito...”. Mas “muito” comparado com quê? Falemos, então, de comparações.
Se compararmos os valores da precipitação ocorrida em Portugal neste Outono (Setembro a Novembro) com os médios para a mesma altura observam-se, de facto, registos mais elevados, tendo este sido o mais chuvoso dos últimos 42 anos, com um valor 180% superior à média. Por exemplo, em Lisboa, foi o segundo mais chuvoso desde 1901.
Mas de modo a saber-se qual é o verdadeiro culpado pelos problemas a que assistimos ao vivo, nos jornais e na televisão, a comparação a efectuar não deverá ser essa, mas sim entre os valores da precipitação ocorrida e os que, legal e regulamentarmente, terão sido adoptados nos projectos que deram origem às obras de saneamento e de regularização fluvial – isto já para não falar dos “não-projectos” e das “não-obras”. Fazendo essa comparação utilizando as precipitações máximas ocorridas na região de Lisboa (a título exemplificativo) no passado Outono, verifica-se que:
- Em termos de colectores, com durações de chuvada de 10 e 20 minutos (críticas para dimensionamento) atingiu-se, respectivamente, 75% e 91% do valor regulamentar;
- Em relação a ribeiras, para períodos inferiores a 1 hora, o máximo foi de 64% do determinado legalmente; para superiores, foi sempre inferior a 50%.
Assim, constata-se que a culpa não é da “coitada” da Natureza, a suspeita do costume; houve foi decisões mal (ou não) tomadas, projectos mal elaborados e obras mal construídas. Ou seja, não “choveu muito”, o ser humano é que meteu água.
Então mas, afinal, quais foram as verdadeiras causas? Referindo apenas algumas:
- a desregrada ocupação do solo consequência, entre outros, do peso da construção civil nas autarquias e de deficiente ou não cumprido planeamento urbanístico;
- a falta de limpeza e manutenção, constatável no assoreamento e no lixo acumulado em leitos e margens, resultado do não cumprimento da lei, da inexistência de acções fiscalizadoras e da falta de vontade política e de meios materiais e humanos para a fazer cumprir;
- a má concepção e/ou o sub-dimensionamento de obras, verificável, por exemplo, em colectores e passagens hidráulicas que obstruem o escoamento, fruto de obscuros ou inexistentes licenciamentos e de incompetentes intervenções por parte, inclusive, de entidades oficiais;
- finalmente, as descargas das barragens, função da gestão das bacias hidrográficas, ponderada com os interesses energéticos em jogo.
Como facilmente se percebe, em todas estas causas está a mão humana e não a Mãe Natureza.
Em conclusão, giramos adequadamente os nossos sistemas hídricos e olhemos para a Natureza como aliada e não como a causadora dos nossos males - não nos esqueçamos que a verdade inconveniente é que o que se passa é precisamente o inverso.
PS - Durante o Governo Guterres e após graves inundações na altura ocorridas, a deputada socialista Maria do Céu Lourenço dizia, na Assembleia da República, que "as alterações climatéricas derivadas do efeito estufa provocaram uma situação anormal, impensável e imprevisível de intempérie, sendo essa e não outra a verdadeira razão dos prejuízos verificados no Baixo Mondego em particular e no País em geral". Mais extraordinário ainda: "lançar acusações contra o Governo, nesta matéria, para lá de caricato, é pura demagogia e corresponde a uma forma inaceitável de fazer política". Lindo!
PPS - Será que o director do DN concorda com os disparates acima citados? ou, por outro lado, será que também não quer "ver" as verdades que não dão jeito ao poder instalado?