CUOTIDIANO

terça-feira, março 25, 2008

A máquina

Repartição pública. Era preciso tirar senha. Fundamental. Urgente.

Cheguei ao pé da máquina. Aproximei-me para ler as instruções.

(Senha A para casamentos, senha B para divórcios, senha C para nascimentos e senha D para frangos assados.)

Linha seguinte.

(Tire a sua senha, por favor.)

Sim senhor, maquineta inteligente e educada. Em todo o caso, se há coisa que me irrita é darem-me ordens – tire a senha mas é o caneco! Resolvi ripostar. Então...

Não tiro! Encostei-me à máquina e não carreguei em nenhum botão. Zero! Nicles!

(Toma lá, máquina!)

Esperei.

(Sim, é que é para isso mesmo que servem as repartições públicas – para esperar.)

Do visor começaram a escorrer estranhas lágrimas de bytes. Apesar da óbvia e inevitável comoção, não cedi...

- Vá lá, tire uma senha, pooooor favoooor....

Não! Decididamente não!

- Poooor favoooor, só uma, uminha, vá lá, peço-lhe, imploro-lhe...

Napes!

- Uma, só uma, please...

Da máquina começou a sair um fumo estranho, enquanto começava a dizer frases sem nexo. Do tipo

- Jerusalém 4ever, ou

Seja como for, não cedi - não tirei a senha, evidentemente!

No dia seguinte, quando me pediram a certidão que não tinha, não acreditaram que eu tinha estado, precisamente, na mesma repartição em que, segundo os tablóides, uma máquina das senhas se havia suicidado. Acharam que isso era só acontecia nas telenovelas, os totós...

(e – pior que tudo - ainda não perceberam que as telenovelas são bem mais estupidamente realistas que a própria vida?!)

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sexta-feira, março 21, 2008

Sexta-feira tonta

- Então pá, o que é que estão a fazer?! – gritou o coelho, enquanto era levado por uns tipos com um ar estranhamente festivo que o haveriam de pregar a uma cruz.

Tinha tido azar. Havia sido apanhado pela Seita das Misturas Tradicionais que, já no Natal anterior, suscitara grande polémica, ao obrigar uma desgraçada qualquer a parir num estábulo, entre uma vaca e um burro, um velho barbudo vestido de vermelho.

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segunda-feira, março 17, 2008

Citações (I)

“Segundo estudos independentes, só entre 2001 e 2003, Bush, Powell, Rumsfeld, Cheney, Condleezza Rice e mais membros da administração americana proferiram um total de 935 declarações falsas [sobre a guerra no Iraque]. Neste quadro de terror e mentira impunes, não deixa de ser chocante que, nos Estados Unidos, um governador seja forçado a demitir-se por ter mentido... sobre a sua vida sexual."

Manuel António Pina, "Jornal de Notícias", 17 de Março de 2008

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domingo, março 02, 2008

Recordações

Aqui estou, nesta cama de hospital, a contar moscas e a conferir o número de mamas de cada enfermeira.

(se calhar seria melhor começar pelo princípio)

Passavam três anos, dois meses e vinte e dois dias desde que ela havia saído de casa. Levara tudo – quadros, livros, cheiros, bibelots, talheres e, principalmente, recordações. Mas, por acaso, esquecera-se de uma delas - infelizmente não de alguma das vezes em que fizemos amor,

(deduzo que tenhamos feito, quase de certeza - não tenho é recordação disso)

mas sim de uma ida ao jardim zoológico em que eu tropecei junto ao sino do elefante - mas que se lixe, já era alguma coisa. Alguma coisa dela me havia ficado.

Tocaram à porta – era ela. Sorri-lhe instintivamente.

- Olá. Venho buscar a recordação que me esqueci de levar da última vez – disse-me secamente.

Foi-se embora com a minha última recordação dela, tudo o que me restava daquele grande amor.

(de certeza que havia sido um grande amor, só pode ter sido – quase que garanto, apesar de não ter qualquer recordação)

Não consegui aguentar, quis morrer. Atirei-me da janela, adeus mundo.

Para meu azar, nesse preciso instante ela saía da porta do prédio. Ao aterrar-lhe em cima, sobrevivi - mas esmaguei-a, o que fez com que levasse com ela, agora de um modo definitivo, todas as minhas

(estou absolutamente convicto que sim, mas não me recordo)

mais belas recordações.

E assim aqui estou, nesta cama de hospital, a contar moscas e a conferir o número de mamas de cada enfermeira. Ah, é verdade, ontem um elefante veio visitar-me, querendo saber se eu já estava recuperado do tropeção. Não me recordo é de que raio é que ele estava a falar – mas que se lixe

(simpático o bicho, não?)

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