CUOTIDIANO

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Pénis Hilton

- Olha, olha Zé, olha quem é ela, é a… a… a Pénis Hilton, é isso, aquela ricaça finória! E com aquele seu cãozinho ao colo… ui, tão lindo, é aquele pequenino a quem ela só dá bifes do lombo, estou-te a dizer, li isso numa revista! Põe mais alto o som, depressa!

- Espera, mulher; mas onde é que está a porcaria do comando?!

- Ó ceguinho, mesmo aí ao pé da tua mão! Vá, rápido, sobe o som, ela está num 'toque-sou' ou lá o que é isso! Rápido!

- Let’s say goodbye to Paris Hilton, thank you for these few but very pleasant moments.

- Thank you.

- Olha que chatice, tinha de acabar agora. 'Gandázar'! Muda lá para o telejornal, pronto.

- Ok, eu mudo mulher; mas passa aí mas é as batatas.

- Toma lá. Eh, o que é isto?! Estes tipos estão doidos ou quê? Uma notícia sobre a fome na Somália? Que nojo, notícias destas à hora das refeições. E olha para aqueles, todos esqueléticos! Que nojo! Muda, muda, rápido, muda!


(Entretanto, lentamente, o Mundo gira – mas, infelizmente, não muda.)

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sexta-feira, janeiro 15, 2010

Crise, qual crise? (Quem és tu, Martins d’Almeida?)

Martins d’Almeida aproximou-se, em passada confiante, do edifício de escritórios daquela quase secular multinacional que, muito em breve, seria sua. Enquanto avançava, em seu redor crianças passeavam de triciclo, ouviam-se sons esporádicos – incluindo um pássaro cantarolante de uma qualquer canção do Marco Paulo -, do outro lado da rua um vendedor de gelados agitava um sino, qual elefante-pigmeu, enfim… gente anónima como um dia, um dia outroríssimo, ele fora. Por pano de fundo, alguns altos funcionários da Deloitte atiravam-se das janelas de seus altaneiros andares aos gritos “salvem-se, vem aí Martins d’Almeida!”, ou “100 é maior que 99!”, não sei bem, estou apenas a citar o que me foi contado. Enfim, seja como for, cá em baixo não eram doutores nem engenheiros, apenas ovos estrelados. Bem passados.

- “Já em pequenino, quando os outros meninos jogavam ao Monopólio, ele aparecia de repente, pegava nas notas todas, fugia e escondia-se a contá-las. Claro está que depois levava pancada, perdão, porrada!” (Avó paterna)

Estava cada vez mais próximo do edifício, como mais próximo estava de seu grande objectivo: ser o peso pesado do seu mundo profissional, o tipo do harém das fulanas de óculos e máquinas de calcular e frases inexpugnáveis.

- “Em adolescente era lixado; sempre que via uma foca pontapeava o crocodilo que mais próximo dele estivesse.” (Zé, o gajo internado por engano em vez de Napoleão)

Enquanto Martins d’Almeida avançava, o passeio tremia – de medo, de respeito? Não, do peso, a vida é sempre mais prosaica do que se julga. Mas o que é que isso interessa? Martins d’Almeida e a sua OPA amestrada haviam conquistado o topo do mundo, o Evereste da finança mundial, o Kilimanjaro do Hemingway.

- “Martins d’Almeida, Martins d’Almeida… assim que chegou à fase adulta, tornou-se numa mulher linda; como que saiu do casulo e começou a voar. Sim, de facto é o que melhor recordo, a sua bem delineada silhueta de mulher, as suas asas. Sabe, há sempre aquela cumplicidade Mãe-Filha, não é? O quê, é um homem? Então não conheço!” (Mãe)

Entrou no elevador. Carregou no botão para o último andar, só acessível a VIPS e lavadores de janelas. Ah, e ao cão do Ci-i-ão. Em boa verdade, já nada o poderia deter.

- “Para nós é uma honra passarmos a ser comandados por Martins d’Almeida. Para nós é uma honra passarmos a ser comandados por Martins d’Almeida. Para nós é uma honra passarmos a ser comandados por Martins d’Almeida. Para nós…“ (sócio maioritário da Deloitte, enquanto treinava a overdose de hipocrisia que acabou por conduzi-lo ao suicídio, exactamente 37 segundos antes de Martins d’Almeida entrar, sorridente, na sala da direcção.)

Quando entrou, só e triunfante na sala, Martins d’Almeida teve a sua primeira erecção de poder. Saboreou-a. Depois contemplou pela janela o silêncio. Depois ainda, olhou à volta. E nada. Chamou por alguém. Nada. Era o dono do mundo mas… nada. Por momentos, lembrou-se das crianças a passearem de triciclo, dos cheiros, dos tais sons esporádicos, até do insignificante (mas que agora parecia importantíssimo) vendedor de gelados, enfim… gente. Como outrora, outroríssimo, ele fora. Mas borrifou no assunto, estava no topo do mundo, o que é que interessam as pessoas?

- “Porquê eu? Porque carga de água querem que eu fale sobre Martins d’Almeida? Eu que, por certo, serei quem menos o conhece? F***-**!” (Martins d’Almeida)

Desceu de elevador. Saiu a porta da multinacional, agora sua. Olhou para trás, sorrindo antecipadamente ao dia seguinte. (O que lhe estaria reservado?)

A pé, avançou dois quarteirões. Entrou no carro abandonado que há muito chamava de lar, enrolou-se em jornais antigos. Algum tempo depois adormecia, apesar da estuporada barulheira provocada pela queda de executivos, nem sequer prevista quer pelo boletim meteorológico, quer por Wall Street.

“Que merda!”, pensou Martins d’Almeida. Mas a que se referiria?

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