CUOTIDIANO

quinta-feira, novembro 21, 2013

Quando ela partiu


 Um dia ela partiu sem deixar rasto, o que me deixou sozinho com a sempre difícil tarefa das partilhas. Decidi ficar com a saudade, a sede e o sabor dos breves momentos juntos - lábios e mãos incluídos -, deixando-lhe o dia-a-dia, o abraço em espera e o instante exacto e absurdamente preciso da nossa morte. Mas tudo isso não me fazia esquecê-la… onde estaria?

Nesse dia à noite, no meu quarto vazio até de mim, lembrei-a. Não conseguia dormir, sofro de insónias cómicas, cósmicas ou lá o que é que o meu médico disse. Fui até à janela. A noite baralhava estrelas pelas galáxias, aviões sulcavam traços de realidade a pincel e sons, casais desligavam luzes ligando abraços em simultâneo, ouvia-se a brisa beijando as folhas das árvores que, aos pares, brincavam ao homem-estátua, carros faziam piões no asfalto só para o ouvir gritar – ou seja, havia vida que se espalhava como epidemia na noite, desde os locais mais longínquos do espaço até aos corações mais longínquos do meu bairro. E eu ali, à espera, mais uma vez adiando-me para outro século, para outra vida que não teria. Mas tudo isso não me fazia esquecê-la… onde estaria?

De manhã acordei só segundos depois de me levantar, tal era a pressa de ter notícias dela. Percorri telemóveis, mails, caixa de correio, porteiro, até me revistei por dentro à procura de um simples recado que fosse, um bilhete, um canhoto do cinema onde se sentisse a presença dela, do seu sabonete de alma. Nada. Liguei a televisão. Apático ouvi as notícias. Uma violação em grupo ocupava o “prime-time” do telejornal, ao que parece o Governo havia criado uma lei que obrigava as pessoas a nascer com menos de um metro de forma a poupar nas casas – “mais andares para a mesma altura total” foi um conceito considerado brilhante no Conselho de Ministros - e a morrer no dia seguinte à entrada na reforma repulsiva, economizando em prestações sociais. Estranhamente – já que a sodomia é um tema que normalmente me agrada - continuei apático. Mas tudo isso não me fazia esquecê-la… onde estaria?

Mais tarde fui até ao rio, olhei-o nostalgicamente. Era, de facto, o rio errado, o momento errado mas, sem saber porquê, aquele cheiro agradava-me, quase salivava de reflexos pavlovianos ao lembrar o genuíno reflexo dela nas águas do Rio Certo. Sentei-me nas margens, alimentando-o com as lágrimas que me percorriam o sangue, tal qual quando, na infância, atirava amendoins aos animais no Jardim Zoológico. Depois, num estranho momento, talvez motivado por um hipocondríaco excesso de insolação lunar, senti-me leve, deixei de sentir o que quer que fosse, de querer saber alguma coisa e voei por sobre tudo.

Soube apenas que a guardaria para sempre – onde quer que ela estivesse. E ainda hoje isso me basta.