CUOTIDIANO

quarta-feira, abril 12, 2006

Madame Saya

“Próximo!”, gritou Madame Saya para que a sua assistente a ouvisse. Era sábado ao fim da manhã, ia dar a última das suas consultas da semana e ainda queria ir almoçar à Ericeira. Decididamente, estava com pressa. No entanto, o seu profissionalismo não lhe permitia desmarcar ou apressar consultas. Por isso ali estava, apesar do lavagante que, há mais de uma hora, a esperava todo nu a dezenas de quilómetros dali. Ah, até já lhe crescia água na boca! Para afastar esse pensamento, gritou novamente: “Próximo!”
“Dá-me licença?”, perguntou Dona Josélia, enquanto espreitava respeitosamente pela porta entreaberta do gabinete da Madame, cujo prestigio havia subido em flecha desde que previra que Portugal iria colocar obesos em Marte antes de 2088.
“Então, o que a trás por cá?”, perguntou Saya.
“É o meu marido Madame, acho que anda metido com outra e que quer sair de casa para ficar com ela...”, respondeu Dona Josélia, choramingando.
“Não se preocupe, eu estou aqui é para ajudar. Vamos lá então ver isso!”
E começou a sessão. Despejou sobre a mesa um enorme tacho de caril de frango que, rapidamente, se espalhou por todo o lado - parte dele foi, até, parar ao chão, tendo sido avidamente devorado pelo seu cão, um possante e imponente macho chamado Soraya.
“Ora bem”, disse a Madame, “vamos lá começar a fazer a leitura do caril. Em primeiro lugar, estas asas aqui do meu lado direito podem querer dizer que, de facto, o seu marido está com vontade de voar para longe. No entanto, repare...”, continuava Saya enquanto Josélia, cada vez mais deslumbrada com o rigor científico que a Madame colocava em cada observação, ia concordando, em gestos bem sincopados com a cabeça, “repare bem, estas pernas que ficaram apontadas para Mercúrio podem significar que o amor que ele tem por si não o deixa ir para longe - ou então que o frango estava contaminado com um fungo sudanês. Curiosamente, aqui no meio, como vê, ficaram dois peitos com molho à volta, simbolizando os anéis de Saturno, o que pode significar que ele pretende fazer uma plástica de implantes mamários.. Mas, agora que reparo melhor, aí ao fundo está algo, isso sim, que me parece extremamente grave – o rabo do frango voltado para cima!”

Enquanto isto o lavagante, cada vez mais impaciente, ia comendo tremoços e bebendo imperiais. “Mais uma!”, gritou.

Josélia estava estarrecida, com os olhos mais esbugalhados que um esbugalho.. “E então, Madame, o rabo voltado para cima significa o quê?”
“Nem sei por onde começar”, disse Saya, pela primeira vez com um ar inibido.
“Mas diga-me, diga-me a verdade, por favor não me esconda nada!”
“Muito bem Dona Josélia, foi a senhora que pediu para saber tudo. O rabo para cima simboliza uma atitude tipo possuam-me violentamente, o que pode significar que o seu marido pretende fazer uma operação de mudança de sexo, por forma a se tornar numa mulher do sexo oposto.”
“Oh não, não pode ser!”, gritava, chorava, borrava-se Josélia, estragando toda a compostura com que até aí havia estado. “E tudo o que eu sonhei, aquela viagem às Caraíbas que seria a nossa segunda lua-de-mel, a nossa casa de campo para os fins-de-semana, as sopas de lata que iríamos sugar por uma única palhinha do amor, os orgasmos que poderia algum dia vir a atingir, os filhos, sim, os filhos que iríamos, por certo, ter..., onde é que isso tudo vai agora parar?!” perguntou, retoricamente, uma chorosa e desesperada Josélia.

O lavagante, esse sim, desesperava. Estava ali há três horas à seca, com umas dores horrorosas nas costas, já com uma grande buba - e Saya que não havia meio de aparecer...

“Pois é”, disse a Madame em tom coloquial, despedindo-se de Josélia enquanto lhe dava umas palmadinhas de consolo nas costas, “os homens são todos iguais. É por estas e por outras que tive o meu filho em parceria com uma espiga de milho transgénico”.

À saída do consultório, cabisbaixa, Josélia nem protestou com a assistente da Madame sobre o exorbitante preço a pagar, pois toda a gente sabia que, ali, o serviço era esmerado – exemplo flagrante disso é que só se usava frango de campo, pois o de aviário, por falta de qualidade, podia conduzir a previsões muito estranhas.

Na saborosa solidão do seu gabinete, Saya acendeu um cigarro, deixando-se envolver no fumo dos seus pensamentos. “És mesmo fantástica. És profissional, és amiga, ajudas os outros quase desinteressadamente (o que eles pagam quase nem dá para pagar o frango), és de facto uma grande carilmante - mereces mesmo ser do jet-set”. Estava ela nestas doces lucubrações quando, de repente, se lembrou. “Ái o meu lavagante...”. Desatou a correr porta fora à procura do Mercedes, tendo chocado com Dona Josélia, que chorava convulsivamente, abraçada a um poste de electricidade importado da Ucrânia.

Entretanto, algures na Ericeira e olhando para o relógio, o lavagante gritava “MER-DA!” .

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