O crime do padre Abralho
João levantou-se cedo. Tinha dormido em sobressalto pois as expectativas estavam bem altas, tanto mais que tudo se conjugava para um óptimo dia de trabalho – muita clientela, espaços apertados, bom tempo, todos os santos a ajudar. “É o meu melhor dia do ano”, pensou, irradiando felicidade - “todos os 13 de Maio, aqui em Fátima, é sempre a mesma coisa, ganho para o mês inteiro!”. Despediu-se da mulher com um curto “até logo!”, que não havia tempo a perder, tendo partido tão confiante que nem ouviu o conselho que ela habitualmente lhe dava, o costumeiro “tem cuidado!”. Ah, esqueci-me de dizer – João era carteirista.
José também madrugou. Pelas mesmas razões, iria ser um excelente dia para o negócio. A sua loja de venda de artigos religiosos – “tudo material certificado... e abençoado!”, não se cansava de repetir – teria o seu pico de clientela anual, tendo tal facto permitido, até, o luxo de “benzer” os preços; enfim, coisa pouca para quem todo o ano esperava por este dia para vender como nunca, desde crucifixos a velas coloridas, de santinhas a Bíblias com capas de couro, tudo isto aos mais diferentes preços e para os mais diversos gostos. Enfim, era quase garantido que seria um dia inesquecível de lucros. Abriu a loja ainda a manhã começava a raiar e ficou, calmo e confiante, aguardando o seu primeiro cliente.
Quando o resto da família acordou, Pedro já tinha vindo do mercado, encontrando-se a escamar quilos de douradas, robalos e linguados, “que o dia promete!”. Era ele que, pessoalmente, escolhia toda a comida que entrava no seu restaurante, onde a mulher ajudava na cozinha, a filha e o genro serviam às mesas e o filho, o intelectual da família, tratava das contas na caixa registadora e das ementas no computador - “o rapaz vai longe na Informática”, babava-se Pedro aos amigos, “até já tirou um curso em Lisboa...”, rematava orgulhoso.. “Vamos lá a despachar, hoje é 13 de Maio, nada pode falhar!”, berrou ele para a sua sagrada família.
Enquanto isso, Abralho, o padre milagreiro, ainda ressonava, consequência de, na véspera, ter aproveitado o resto do vinho da missa para brindar aos mais diversos santos; o problema é que se havia despistado, tendo perdido a conta aos brindes. “A culpa não é minha, há é santos a mais!”, desculpou-se quando foi acordado, em sobressalto, pelo sacristão. Vestiu-se à pressa e partiu a correr para a Capela dos Milagres, onde havia ganho a alcunha de “milagreiro” não pelo nome da capela mas porque, um dia, fez com que um cego andasse. “13 de Maio, hoje a caixa das esmolas vai ficar cheia de certeza!”. Tão absorto ia nos seus pensamentos que até tropeçou num fiel em joelhos, vindo sabe-se lá de onde. “Porra de peregrinos!”, blasfemou – à noite iria pagar esta frase com umas quantas “Avé Maria”.
Ao fim da tarde, João (que, no grupo, se auto-intitulava de “O empresário”), José e Abralho, amigos já de há longa data, sentaram-se, exaustos, na mesa do costume, a do canto, no restaurante do seu amigo Pedro, bebendo umas imperiais. “Junta-te a nós”, pediu Abralho ao seu velho companheiro de petiscadas. “Então, grande dia para todos, não?” perguntou retoricamente Pedro, do alto do seu vozeirão, provavelmente a única consequência agradável dos seus cento e quarenta quilos, indo ter com eles. “Bom? foi mais que bom, foi milagrosamente óptimo!”, respondeu José, entre gargalhadas, secundado pelos outros companheiros, enquanto Pedro se ia sentando à mesa, comendo uns tremoços e coçando os seus enormes pés. A conversa ia prosseguindo no mesmo tom leve e descontraído quando, subitamente, Abralho interrompeu, angustiado - “Vocês desculpem, eu sei que isto vai parecer muito estúpido, mas há tantos anos que nos reunimos aqui a 13 de Maio, depois da enchente louca de pessoas como a que tivemos hoje, que já me esqueci porque carga de água é que é nesta data que, invariavelmente, vem cá o povo todo. Alguém se lembra?”. Fez-se um silêncio sepulcral. Ninguém sabia. “Eu sei que tem a ver com qualquer coisa religiosa...”, alvitrou João. “Se calhar...”, disse o padre Abralho. “Mas que chatice, é que não me consigo lembrar!”
Era a gota de água - algures nos Céus, Cristo converteu-se ao Budismo.
José também madrugou. Pelas mesmas razões, iria ser um excelente dia para o negócio. A sua loja de venda de artigos religiosos – “tudo material certificado... e abençoado!”, não se cansava de repetir – teria o seu pico de clientela anual, tendo tal facto permitido, até, o luxo de “benzer” os preços; enfim, coisa pouca para quem todo o ano esperava por este dia para vender como nunca, desde crucifixos a velas coloridas, de santinhas a Bíblias com capas de couro, tudo isto aos mais diferentes preços e para os mais diversos gostos. Enfim, era quase garantido que seria um dia inesquecível de lucros. Abriu a loja ainda a manhã começava a raiar e ficou, calmo e confiante, aguardando o seu primeiro cliente.
Quando o resto da família acordou, Pedro já tinha vindo do mercado, encontrando-se a escamar quilos de douradas, robalos e linguados, “que o dia promete!”. Era ele que, pessoalmente, escolhia toda a comida que entrava no seu restaurante, onde a mulher ajudava na cozinha, a filha e o genro serviam às mesas e o filho, o intelectual da família, tratava das contas na caixa registadora e das ementas no computador - “o rapaz vai longe na Informática”, babava-se Pedro aos amigos, “até já tirou um curso em Lisboa...”, rematava orgulhoso.. “Vamos lá a despachar, hoje é 13 de Maio, nada pode falhar!”, berrou ele para a sua sagrada família.
Enquanto isso, Abralho, o padre milagreiro, ainda ressonava, consequência de, na véspera, ter aproveitado o resto do vinho da missa para brindar aos mais diversos santos; o problema é que se havia despistado, tendo perdido a conta aos brindes. “A culpa não é minha, há é santos a mais!”, desculpou-se quando foi acordado, em sobressalto, pelo sacristão. Vestiu-se à pressa e partiu a correr para a Capela dos Milagres, onde havia ganho a alcunha de “milagreiro” não pelo nome da capela mas porque, um dia, fez com que um cego andasse. “13 de Maio, hoje a caixa das esmolas vai ficar cheia de certeza!”. Tão absorto ia nos seus pensamentos que até tropeçou num fiel em joelhos, vindo sabe-se lá de onde. “Porra de peregrinos!”, blasfemou – à noite iria pagar esta frase com umas quantas “Avé Maria”.
Ao fim da tarde, João (que, no grupo, se auto-intitulava de “O empresário”), José e Abralho, amigos já de há longa data, sentaram-se, exaustos, na mesa do costume, a do canto, no restaurante do seu amigo Pedro, bebendo umas imperiais. “Junta-te a nós”, pediu Abralho ao seu velho companheiro de petiscadas. “Então, grande dia para todos, não?” perguntou retoricamente Pedro, do alto do seu vozeirão, provavelmente a única consequência agradável dos seus cento e quarenta quilos, indo ter com eles. “Bom? foi mais que bom, foi milagrosamente óptimo!”, respondeu José, entre gargalhadas, secundado pelos outros companheiros, enquanto Pedro se ia sentando à mesa, comendo uns tremoços e coçando os seus enormes pés. A conversa ia prosseguindo no mesmo tom leve e descontraído quando, subitamente, Abralho interrompeu, angustiado - “Vocês desculpem, eu sei que isto vai parecer muito estúpido, mas há tantos anos que nos reunimos aqui a 13 de Maio, depois da enchente louca de pessoas como a que tivemos hoje, que já me esqueci porque carga de água é que é nesta data que, invariavelmente, vem cá o povo todo. Alguém se lembra?”. Fez-se um silêncio sepulcral. Ninguém sabia. “Eu sei que tem a ver com qualquer coisa religiosa...”, alvitrou João. “Se calhar...”, disse o padre Abralho. “Mas que chatice, é que não me consigo lembrar!”
Era a gota de água - algures nos Céus, Cristo converteu-se ao Budismo.
2 Commenários:
É o verdadeiro mistério da Fé...
By José Raposo, at 15 de maio de 2006 às 22:01
Retribuindo... Muito bem-vindo, SUBURBANO
By cuotidiano, at 15 de maio de 2006 às 23:57
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