CUOTIDIANO

sexta-feira, abril 14, 2006

O Morto


Morreu. Estava morto. Pim. Finito.

Os amigos rodeavam-no pela última vez, com frases entrecortadas por soluços. Lágrimas fugiam apressadamente dos olhos, ansiando pela terra que queriam partilhar com ele. Mas como estava morto, não agradeceu.

Enquanto isto, lá por cima, não havia Céu que o quisesse receber. A alma bem tentava – O Deus dos católicos não lhe perdoava a infidelidade conjugal, o dos protestantes também não, Alá nunca o tinha visto pôr uma bomba no Metro e Buda achava-o demasiado magro. Vagueava, a alma, por entre os diversos Céus, já quase sem gasolina espiritual, prestes a ter de encostar numa qualquer nuvem de serviço.

Cá por baixo, os amigos tinham voltado do Café, com mais uns whiskys no bucho, não só para esquecer a morte como, simultaneamente, o lembrar melhor. Um deles avançou para o caixão e perguntou-lhe se queria beber alguma coisa. Como estava morto, não agradeceu.

Lá por cima, a alma abasteceu-se na gasolineira “Cloud number nine”, propriedade de um cantor famoso, o que lhe permitia continuar a deambular pelo Espaço à procura de poiso. “E se eu fosse à Ateulândia ?” Pôs-se a caminho, passando por pequenas aldeias das diversas seitas, desde os “Mormons” até aos “Toma-Lá-Disto-Em-Nome-De-Cristo”, que, ao vê-la, haviam fechado os Portões e obrigado as suas fiéis almas a rituais de higiene espiritual.

Cá por baixo, o espírito da sala mortuária estava cada vez mais animado. Um dos amigos havia posto música bem alto e todos cantavam e dançavam espanholadas à volta do caixão - Um deles até despejou uma cerveja por cima do morto para ver se ele também se animava, já que estava extremamente pálido. Como estava morto, não agradeceu.

Lá por cima, a alma finalmente chegou à Ateulândia onde, mal a viram, lhe enfiaram com um charro – onde não se sabe, pois os orifícios das almas ainda não foram estudados. “’Tá-se bem...”, pensou a alma, reconfortada após tão longo caminho.

Cá por baixo, simultaneamente com a primeira passa celestial, o Morto levantou-se, dançou e, voltando-se para uma boazuda qualquer, disparou com sotaque brasileiro: “’Bora no privado?” Ela aceitou mas ele, como estava morto, não agradeceu.

P’ infinito.

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