Dia da Libertação
“Desisto do curso”, disse ela peremptoriamente ao jantar, a propósito de nada, entre duas garfadas de perú assado. A familia nem queria crer (o perú também não mas, como lhe tinham cortado o pescoço, não conseguia falar). “O quê?!”, gritou o pai. Nessa altura, já a mãe descrevia incontáveis órbitas à volta do candelabro, como sempre fazia em situações de ‘stress’, pelo que ninguém ligava. “Sim, ouviu bem, assumo que não consigo, não quero mais estudar e, por isso, vou trabalhar para o campo como adubo”, respondeu a filha. “Vais desistir...adubo?!”, gritou, novamente, o pai. “Sim, é que eu sei e assumo que sou uma bosta”. A sala paralisou. Passaram-se curtos, mas intermináveis, segundos de silêncio gélido. De repente, toda a gente na sala se pôs de pé e irrompeu em aplausos delirantes – É que sempre lhe haviam dito que o momento fundamental da vida era quando as pessoas se assumiam como realmente eram e que, a partir daí, tudo seria mais fácil. Então aquele era, de facto, o seu momento de glória, o seu Dia da Libertação.
Pouco depois, a sala ficou às escuras – é que, ao ouvir isto, os electrões das lâmpadas piraram-se para as ruas, em gritinhos histéricos próprios de criaturas baixas.
Aproveitando a escuridão e o balanço da situação, o pai beijou o mordomo e, quando acenderam as velas, ele também se assumiu perante todos, depois de uma vida inteira de enganos e mentiras.
Enquanto a mãe acelerava a órbita, os restantes também aproveitaram aquele momento para se libertarem: o filho fugiu com a gata, o perú com a faca de trinchar (desde aí têm uma relação sado-masoquista linda), a mesa pôs um turbante e casou com todas as cadeiras, a retrete foi viver com uma cheirosa bufita, Ramona, a empregada espanhola, foi fazer novelas mexicanas dobradas em hebraico arcaico, Manuel, o secretário, casou consigo próprio numa cerimónia só para jornalistas acreditados por ele mesmo e, finalmente, surgiu de dentro de um armário, aos saltos, um ‘gay’ que ninguém sabia quem era.
Com a casa deserta, a mãe continuava a orbitar pelas profundezas do candelabro. “Como é solitária esta vida no espaço...”, suspirou.
Pouco depois, a sala ficou às escuras – é que, ao ouvir isto, os electrões das lâmpadas piraram-se para as ruas, em gritinhos histéricos próprios de criaturas baixas.
Aproveitando a escuridão e o balanço da situação, o pai beijou o mordomo e, quando acenderam as velas, ele também se assumiu perante todos, depois de uma vida inteira de enganos e mentiras.
Enquanto a mãe acelerava a órbita, os restantes também aproveitaram aquele momento para se libertarem: o filho fugiu com a gata, o perú com a faca de trinchar (desde aí têm uma relação sado-masoquista linda), a mesa pôs um turbante e casou com todas as cadeiras, a retrete foi viver com uma cheirosa bufita, Ramona, a empregada espanhola, foi fazer novelas mexicanas dobradas em hebraico arcaico, Manuel, o secretário, casou consigo próprio numa cerimónia só para jornalistas acreditados por ele mesmo e, finalmente, surgiu de dentro de um armário, aos saltos, um ‘gay’ que ninguém sabia quem era.
Com a casa deserta, a mãe continuava a orbitar pelas profundezas do candelabro. “Como é solitária esta vida no espaço...”, suspirou.
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