CUOTIDIANO

sexta-feira, outubro 15, 2010

Ao lembrar-te, Mãe

Eu sei que tu estás a velar por mim, como nunca o fizeste em vida. Sei que não me deixas esquecer o quão tudo é relativo, não porque me tivesses dado conselhos definitivos (ou algo assim sob a forma de estupidez) mas apenas e só porque assisti à tua vida, globalmente inútil e absurda, mas de instantes – pontuais, cirúrgicos - feitos momentos para sempre, em que os dedos roçaram a alma, em que os olhos choraram Eternidade a cada rodopiar, a cada cisne renascido.

A verdade é que tenho saudades tuas; não que te quisesse aqui, substituindo este embriagante torpor da solidão, não que lembre algum momento em particular que tivesses tido comigo – porque, estranhamente, nunca o tivemos -, mas só e apenas por hoje eu ter, finalmente, admitido que, dentro de mim, havia uma parte que era tua, algo que foi crescendo comigo sem que tenhas, sequer, reparado, mas que é o que eu realmente sou, para além de todas as capas que uso sob a forma de tem que ser ou, muito mais simplesmente, sorrisos fáceis.

Hoje lembro tudo. Lembro os primórdios da Gulbenkian, as tournées (agora digressões), as casas emprestadas dos Amigos da Arte (agora são só hotéis, sabes?), as camionetas podres em que se arrancava mesmo que alguém que não estivesse levantasse o braço (agora não há alma com ou sem braços, apenas horários). Mais ainda – lembro as piruetas, os “pas de deux”, os quebra-nozes que quebravam as almas mais empedernidas, as belas adormecidas que, de tão acordadas, saltavam sem destino no palco das suas vidas.

Mas, hoje também, por mais que resolva esquecer-te, sei que te estás nas tintas para isso e que continuas a velar por mim. Não porque acredite em deuses, vidas pós-morte ou patranhas do género – apenas e só porque me deste o teu sangue e me deixaste ver-te dançar. Mãe minha. Minha Mãe.


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