Ai eu
Ai eu que vindo da janela só me percorrem carros e guinchos e nem sequer o pássaro sai da gaiola poisada na sala pira-te estúpido ai eu que ontem ouvia os cheiros das giestas e interpretava os desejos dos pinheiros o bater das asas até das partículas de luz que há muito haviam atravessado oceanos ai eu que aqui estou de memórias mortas e de mulher no outro mundo (que o tempo dói demais sem ser na terra) sabendo que os netos me apaparicam como demente de vida apartada ai eu que sei que meu filho para aqui me trouxe porque se preocupava comigo sem saber que me matava na lentidão dos escapes e dos horizontes tremidos ai eu que dantes passeava até à estação de tratamento enganado como as gaivotas pelo lago lago de merda só depois soube o que era mas antes das gaivotas descobrirem essas estúpidas ai eu que navego sem saber e sem vista quase sem sabor dos minutos e que devoro a ansiedade do pássaro que se extingue à porta da gaiola Olha vem aí o meu neto e o pássaro pousou-lhe na mão (será que sorriu?) e voltou para a gaiola mas porque carga d’ água não me deixaram apodrecer ao lado dela que tanto amei e tiveram tão estupidamente de me salvar? Ai eu que me custa mais subir as escadas deste monstro de betão e de indiferença do que palmilhar quilómetros entre os montes e as enseadas e as gotas de chuva e de suor dos campos ai eu que já fui dono e rei do pôr-do-sol eu que lhe ordenei “pára!” e ele parou eu que lhe gritei “continua!” e ele ressuscitou ai eu que já fui pessoa e não restos obedientes e angustiados ai eu que sobrevivo sem nada quando o tempo se torna tão lento que quase nada me sobrevive ai eu que afinal morri mas falo e peço um pouco de pudim ah não pode ser por causa do colesterol atenção pai que está alto como se o colesterol tivesse capacidade para me matar e eu não estivesse ao invés a morrer de inveja do pássaro que preso ainda canta a morrer de inveja até da rua que é imóvel mas ao menos guincha do ar que entra nos pulmões mais depressa do que um Ferrari pregando sustos às veias ai eu que era alguém e que agora nem consigo viver mas sobrevivo vendo o sacana do pássaro e quanto o invejo e admiro ai eu que (Ó pai tire daí as mãos que essas bolachas fazem-lhe mal) trago aberta a janela do peito (Ó pai já lhe disse afaste-se da janela que é perigoso) e a janela janela aberta que grita por mim e eu parado e ai eu parado e ai eu
Voei. O tempo dói demais sem ser na terra.
Etiquetas: conto/crónica
1 Commenários:
Ai mesmo!
By APC, at 11 de junho de 2010 às 17:42
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