Tempos (modernos)
I
Nunca acerto o relógio da parede da cozinha (o único que tenho) quando, sazonal e inexoravelmente, aqueles senhores dos negócios e que vestem extremamente bem, mandam o povo mudar a hora para, assim, poderem brincar com o nosso dinheiro mais uma horita todos os dias. Deve ser bastante divertido, portanto. Não acerto porque, logo à cabeça, sou genuína e geneticamente preguiçoso; mas, sobretudo, porque me dá um gozo bestial saber que, seis meses depois, a hora remuda e lá vai o povo todo acertar outra vez os seus relógios - enquanto eu, automática e instantaneamente… pim!, já saltei para o meridiano certo. Há quem me diga que eu não viajo no tempo e no espaço, que tenho um modo de ser infantil e parvo. Parvo? Então mas não viajo de borla? Hã? E para quem me chama infantil, arrumo logo com esta: “o teu Pai é um jacaré confuso!” Pim!
II
Há cerca de quinze dias estive, por obrigação – melhor, coacção - profissional, na apresentação pública de um Plano de Pormenor (um daqueles pretensos instrumentos de gestão territorial para que, normalmente, se está tudo nas tintas) em que, perante a população local e durante horas infindas, discursou, habitante a habitante, toda a população local, incluindo o Presidente da Câmara - que, quando se trata de um acto público antes de uma eleição, é sempre, também ele, um local, numa cena mimética do “ich bin ein berliner” kennediano -, um cão psicótico e uma humilde mas extraordinariamente sincera vedação em madeira. Para encerrar a sessão, falou a representante dos moradores da área do dito Plano que, depois de recordar que o processo tinha começado no início dos anos 80 com vista à legalização de suas casas – procedimento esse que seria expectável demorar, segundo a própria Câmara, um máximo de 6 meses… -, terminou o discurso pedindo um minuto de silêncio pelos moradores que haviam iniciado o Processo (sim, merece maiúscula!) mas que, com toda aquela demora, não chegaram vivos ao fim. Por outras palavras, tinham ido morar para (o) outro lado. Levantámo-nos todos com um ar mui respeitoso – incluindo, claro, os tipos da Câmara, provavelmente já os filhos dos que entregaram aos moradores os primeiros quilos de minutas. Este acto fez-me logo lembrar o regresso dos soldados americanos mortos no Iraque e, em 22 segundos, já tinha concluído que se arrisca bastante mais a vida a tentar legalizar uma casa em Portugal do que indo dar tiros para o outro lado do Mundo. Aproveitei os restantes 38 segundos para ir à rua com o cão psicótico mijar na vedação sincera. Voltei. Aplaudi.
III
- Olá, tudo bem? Olha, desculpa telefonar-te a estas horas mas tenho uma má notícia para te dar. É sobre a tua mulher, parece que foi assaltada e lhe levaram tudo. Mas não te preocupes, deve estar bem.
- Assaltada? Então e agora? BI, cartões… bem, tratar disso vai ser uma trabalheira absolutamente louca, com toda a burocracia que este país tem. E já estou mesmo a ver para quem vai sobrar… cá para o je, está visto, é que é sempre a mesma choradeira – ah que não sei, ah que não tenho tempo, ah que confusão… ‘tou completamente lixado!
- Bem, tu lá saberás. Só mais uma coisa: como amanhã é sábado e, mesmo que quisesses, não poderias ir tratar de nada, queres ir beber um copo?
- Não posso, desculpa. No domingo a minha Mãe vai ser operada para lhe retirarem a dignidade humana e ainda me falta organizar os papéis do seguro.
- Então e essa operação é arriscada?
- Não, não há crise. É algo que, hoje em dia, está muito vulgarizado. Ainda por cima - não sei se sabes -, há cada vez mais pessoas que nascem já sem ela; é um sintoma da evolução da Humanidade, não te preocupes.
- Espera aí… estão-me aqui a dizer que… eh pá, desculpa, há bocado percebi mal – a tua mulher não foi assaltada, foi… assassinada!
- Espera aí! Então afinal não é preciso ir tratar dos cartões e do BI e disso tudo?
- … não…
- Eh pá, fixe, nem sabes o peso que me tiraste de cima, já me estava a ver a perder a semana toda em guichets e repartições! Olha, falamos mais tarde, está bem? É que eu preciso de dormir mais um bocado.
- Mas…
- Assaltada? Então e agora? BI, cartões… bem, tratar disso vai ser uma trabalheira absolutamente louca, com toda a burocracia que este país tem. E já estou mesmo a ver para quem vai sobrar… cá para o je, está visto, é que é sempre a mesma choradeira – ah que não sei, ah que não tenho tempo, ah que confusão… ‘tou completamente lixado!
- Bem, tu lá saberás. Só mais uma coisa: como amanhã é sábado e, mesmo que quisesses, não poderias ir tratar de nada, queres ir beber um copo?
- Não posso, desculpa. No domingo a minha Mãe vai ser operada para lhe retirarem a dignidade humana e ainda me falta organizar os papéis do seguro.
- Então e essa operação é arriscada?
- Não, não há crise. É algo que, hoje em dia, está muito vulgarizado. Ainda por cima - não sei se sabes -, há cada vez mais pessoas que nascem já sem ela; é um sintoma da evolução da Humanidade, não te preocupes.
- Espera aí… estão-me aqui a dizer que… eh pá, desculpa, há bocado percebi mal – a tua mulher não foi assaltada, foi… assassinada!
- Espera aí! Então afinal não é preciso ir tratar dos cartões e do BI e disso tudo?
- … não…
- Eh pá, fixe, nem sabes o peso que me tiraste de cima, já me estava a ver a perder a semana toda em guichets e repartições! Olha, falamos mais tarde, está bem? É que eu preciso de dormir mais um bocado.
- Mas…
Etiquetas: conto/crónica, parvoíces
2 Commenários:
ui..
eu não morri, vou ter que tratar disso tudo :SS lol
beijinho*
By Madalena, at 1 de outubro de 2009 às 22:58
Também costumava não acertar o relógio do carro e depois entregava-se a contas interessantes sobre se estaria atrasada ou adiantada...depois passei a acertá-lo para mostrar que não era por não saber que o não fazia
By redonda, at 4 de março de 2010 às 18:02
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