CUOTIDIANO

quarta-feira, abril 08, 2009

Sincera... mente!

O corpo, morto, era o da sua mãe. E a mão, com sangue e pistola, era a sua. A cabeça, sem cabelos mas com enxada, era a de seu pai. E a perna de pau, com vomitado e caruncho, era a do mordomo. O pescoço, de cor meio arroxeada, era da tia que, há trinta anos atrás, havia fugido durante oito meses com o malabarista de um circo itinerante (mas que regressara mais virgem que nunca). E o fígado, na quarta gaveta do móvel da entrada, era o do jardineiro. O cérebro esborrachado no tapete, ainda com lama das trincheiras da I Grande Guerra, era o do avô. E a boca, com telefone acoplado, era a do talhante do rés-do-chão. O pé, estranhamente com unhas pintadas, era do cromo de matemática que sempre lhe atrapalhara os sonhos eróticos. E a nádega era de quem a apanhasse. Para além disso tudo, e indiscriminadamente espalhadas por toda a casa, partes de corpo ensanguentadas, esfaqueadas, arrancadas.


Duas horas antes, no mesmo local, decorria um animado jantar de reencontro de antigos colegas de faculdade, em que a maioria já não se via desde a época das flores no cabelo, das drogas duras, leves e moles, dos grandes ideais, das canções do Bob Dylan antes de se saber que era accionista de uma fábrica de material de guerra, do salvem as baleias e as formigas e o lince zarolho de Almada, do amor universal e mais além ainda, das danças índias com letra “no rain”, e de tudo o mais que formou os anos 60.

Ele, generosa e ingenuamente, havia disponibilizado a sua casa para a festa – e parecia que tudo estava a correr bastante bem, até que alguém disse:

- Sabem que eu e a minha mulher ainda mantemos uma relação aberta, tendo sexo com quem quisermos, e contando tudo um ao outro? Por exemplo, ainda ontem dormi com a nossa cozinheira!

- Olha, tinhas-te esquecido de me contar, querido, mas não faz mal. Por acaso também me esqueci de te dizer que, na semana passada, estive numa orgia ucraniana. Ah, e em Fevereiro foi com a Banda Filarmónica de Mondim de Basto. – Contrapôs a mulher.

Claro que, a seguir, todos os presentes, contagiados pela sinceridade, dormentes do champanhe, anestesiados pela nostalgia, começaram, sempre com um sorriso nos lábios, a abrir o coração uns aos outros, numa indescritível catarse colectiva.


Quando a polícia chegou ao local, só conseguiu formar o puzzle de meia dúzia de corpos, tal era a confusão e a carnificina. Curiosamente, até o gato tinha um buraco de bala bem no meio da testa, consequência de, após dois golos clandestinos de ponche, ter confessado que, na véspera, havia ido para os copos com uma ratazana de esgoto transbordante de sensualidade.

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