CUOTIDIANO

quarta-feira, março 18, 2009

Mêsturbário

Janeiro
Ressaca do ano anterior, ressaca da garrafa anterior, arrasta-se penosamente até ao mês seguinte, qual moribundo em campo de batalha, acreditando que a reencarnação é possível. (Talvez seja, mas abdicando da forma de mês, passando a corporizar-se apenas num sável. Preferencialmente grelhado, à conta do colesterol. Por causa das rabanadas de Dezembro. E assim.)
Fevereiro
Mês instável, incerto, inseguro, no fundo mês in. «Será que acabei? Tão cedo? E para o ano, a mesma graça? Será que poderei implorar mais um dia?» Enfim, quem quer que decida, o facto é que só o atende de quatro em quatro anos.
Março
As vacas dão lã, os pássaros limpam o estrume com vassouras afiadas, os cavalos voam com asas enceradas pela brisa - até a cantora careca encanta. Enfim, com o cheiro a Primavera, tudo é possível. Mesmo.
Abril
Chegam as últimas chuvas, as de compreensão lenta – disfarçadas de “ah e tal o quê já não estamos no Inverno?” E as primeiras mentiras.
Maio
Os trabalhadores não tomam o poder porque estão demasiado ocupados a fazer manifestações contra o poder instituído. Ou ginástica no INATEL.
Junho
A temperatura faz valsas, a humidade perde-se pelo ar… e quando é que alguém grita que não é essa a mudança que quer?
Julho
O Sol disfarça-se de deus egípcio, rodopia pelos ombros, vai, vem, esquece e relembra. Os amantes suam e sabem bem dos corpos. E os corpos sabem bem. Sabem a amantes.
Agosto
O tempo permanece parado à sombra de uma árvore sequiosa de um tempo sem tempo, sequer, para a sede. A cidade também pára, à mercê de uma outra sede qualquer. A pele estorrica. Fervilha. Homens e mulheres, sonâmbulos de vida, buscam as fontes. As fontes, convencidas, escondem-se nas suas próprias silhuetas. Claro.
Setembro
Começa a arrefecer e os signos ressurgem de estranhos hímenes, religiosa e estranhamente guardados pelo Verão. As flores, ainda mais estranhamente, recusam ser regadas. Na escola, os contínuos estremecem. A Torre Eiffel, por seu lado, continua a descolar do frigorífico.
Outubro
Folhas. Mais folhas. Ainda mais folhas. De onde virão? De árvores que não admitem envelhecer? De um outro Verão, mais que morto, após séculos de pneumonia? Se calhar sobram, apenas, de uns estranhos versos melancólicos, versão erudita das cólicas de um rei que nunca virá, como que um D. Sebastião dos bêbados.
Novembro
Vertigem do fim, desespero de medianos, não é carne nem peixe – pior, é uma espécie de marisco podre a tentar sobreviver no mar dos sargaços.
Dezembro
Árvores abatidas por uma depressão em que não há Freud nem Jung nem, sequer, uma estranha luta de classes entre a turística e a executiva que as safe – só mesmo lenhadores experientes, que lhes cortem apenas as pontas, quais barbeiros sem Parkinson. E sem barbaridade. Ah, e nasceu o Cristo em Pombal! (Ou terá sido em Pádua?)

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