CUOTIDIANO

quarta-feira, abril 15, 2009

O homem do costume

Foi o mesmo homem do costume que desceu para beber, como de costume fazia nas noites de 28 de Fevereiro, vindo directo da lua vermelha da sede. Aterrou no podre bar do costume, situado na estranha esquina entre a saudade e a solidão, e pediu bruscamente uma garrafa da marca do costume - como quem entra de rompante nas urgências de um hospital.

As horas passavam sem passar o tempo. Contrariamente às memórias que o carcomiam, o álcool ainda sucumbia à mansidão sem se tornar na eficaz ajuda do costume – excepto, talvez, no pequeno detalhe de, ao cada vez balbuciar pior as palavras, se ir alimentando delas.

(“Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo, originando o pecado pelo qual todos pagamos. Paraíso mas é a merda! Maldito seja.”)

Ele só queria que os céus berrassem, e que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas, e que tudo isso o lavasse da dor, que a levasse, que tudo o que ele tocasse não doesse nem ficasse tingido dela, da sua recordação daquele dia, daquele preciso dia 28 de Fevereiro de 1959, daquelas precisas quatro da manhã, daquela precisa rua em que sua filha morrera atropelada por entre gritos e travagens, quando as lágrimas ficaram vermelhas de sangue, e a noite se fez vermelha de dor, e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas de raiva, e tragam mais outra garrafa e mais uma frase qualquer alguém que fale de futebol alguém que me diga que ainda há palavras doces e baboseiras mas falem entonteçam-me dancem maus hálitos à minha volta gritem! Qualquer coisa…

(“Lembro-me de ainda ter tentado sobreviver – peguei no meu coração e caminhei até ao bosque. Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra. Depois as árvores, os animais, os sons, os cheiros, tudo ficou vermelho. No céu podia tecer uma nuvem toda negra, que vomitasse basaltos, lavrasse lutos e pintasse noites que, mesmo assim, tudo estaria vermelho. Então soube-me morto.”)

Bebeu mais uma e outra e mais outra ainda. Foi-se embora. Em silêncio.

Contrariamente ao que era costume, depois desse dia nunca mais ninguém o viu. Na certidão de óbito escreveram a sua data de nascimento, todos os dados considerados relevantes desde a infância e que havia morrido em coma alcoólico. Na linha correspondente aos sinais particulares anotaram: “sorriso absurdo”.

(“Beijei a Morte. Depois levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho. Como o estranho lugar para onde regresso, como de costume. Mas hoje para ficar.”)


Na lua de novo branca, sua filha escreveu, simplesmente, o nome dele. Com três letras. Como em “Pai”.




Nota: Este texto foi escrito a partir do poema de Herberto Hélder “Se houvesse degraus na terra…”

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2 Commenários:

  • Fica-te bem seres o homem do costume! Não o do texto, claro! ;-)

    By Blogger APC, at 24 de abril de 2009 às 00:16  

  • Eu por acaso acho que te ficaria bem melhor ser o homem do texto e não o do costume, esse já tu te esforças tanto para ser...:))).
    Gosto muito deste texto, quanto mais o leio mais me eriço:)))
    Beijo

    By Blogger alexia, at 29 de abril de 2009 às 21:07  

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