CUOTIDIANO

terça-feira, maio 12, 2009

Catânia

- Obrigada, gostei do almoço. Temos que repetir. - Foi tudo o que ela lhe disse na despedida. Mas a ele soube-lhe a muito mais que isso, quase a música, quase a beijo.

Ele estava ali de passagem. Sentara-se naquela solarenga esplanada siciliana, cansado do que já percorrera a pé nas obrigatórias voltas turísticas que havia a dar - incluindo, até, um sentido cumprimento ao pobre do elefante que alguma mafiosa bruxa transformara em fonte. O Etna estava bem disposto, nem uma faísca, o mar tão calmo quanto sempre, nem uma mais pequena onda. Começou a aquecer ao sol, qual lagarto mas de sangue ainda quente (por quanto tempo?). E estava com fome.

- Posso?

Ela chegara. Disfarçada de anjo por sua vez disfarçado de mulher, ainda pingando beleza e cheiro de céu, sentou-se. Olharam-se. Já se haviam cruzado, já se haviam falado, ela morava próximo do hotel onde ele estava hospedado e, evidentemente, desde a primeira vez em que a vira, sabia perfeitamente que nunca seria possível esquecê-la. E sem que tivesse percebido muito bem como, haviam combinado encontrar-se naquela tarde, mas nada de especialmente concreto. (Como é que teria ela descoberto que ele estava ali?)

- Almoçamos?

Ela tinha idade para ser filha dele - mas provocava-lhe todos aqueles estranhos sentimentos que reexperienciava de novo, relembrando todas aquelas inexplicáveis voltas de estômago e coração, depois dum interregno de muitos, infindos anos. Mas, precisamente pelo tanto que dela ia gostando, respeitava essa diferença, queria que se mantivessem intactos todos os destinos que ela ainda teria a percorrer, que toda a vida que ela transportava e derramava pelo ventre e pelos olhos continuasse à prova dele, que todo o tempo que o mundo lhe havia ainda reservado - com todos os momentos cheios de desilusões e felicidades e gritos e lágrimas, com todos os momentos cheios que ela ainda teria pela sua frente -, fosse dela, apenas dela.

- Já escolheu?

Assim, apesar de ser tudo o que ele mais desejava e por mais subjugado que se sentisse pelo que ela o atraia, não queria atrapalhar, mexer na vida dela. Por isso não fez quaisquer avanços nem jogadas estudadas e treinadas ao longo de anos, limitando-se somente a deixar o tempo fluir, embalado pela brisa que lhes soprava o sol para os corpos. E quão sublime era o dela, transbordante daquele pulsar de vida que só os jovens têm, corpo integralmente concebido a partir dos seus excelsos azuis olhos de fonte. E quando ela ria... por vezes, eles choravam uma alegria até ali guardada – quem sabe? – só e exclusivamente para aquele momento, os contornos de pintura clássica de seus lábios tomavam forma de pássaros que esvoaçavam desejos pelo ar, os seus dedos – que ele tanto queria, apenas e só, tocar, nunca o tentando sequer – iam, delicada e periodicamente, provar suas lágrimas de arco-íris. E ela ria. E era ele que a fazia rir. Perfeição. Perfeição é deixarmo-nos levar pelo riso. Perfeição era.

- Cozinham mesmo bem aqui...

Deliciava-se a olhá-la. Ouvia cada palavra que ela lhe dava, descascando-a completamente de sentido para poder, somente, inebriar-se com o tom suave e o ritmo lento que dentro transportava, sincopando cada frase que ela melodiava. E as palavras assim desnudas traziam, por sua vez e em cada breve instante de uma sílaba, o efémero sonho de um afecto que, um dia, poderia ter dela, mesmo sabendo que tal nunca sucederia, já que não só ele nada faria para que tal acontecesse como também seus mundos paralelos nunca se tocariam - tal qual eles mesmos.

- Sobremesa?

Consequentemente - ele sabia-o de há muito -, seria sempre um amor impossível. Também por isso ou talvez apenas por isso, estava completamente despreocupado, deleitando-se, apenas, com aqueles sublimes instantes em que a saboreava, por toda aquela beleza imensa, por toda a sua juventude, crepitante, abrupta, selvagem, de desejos e utopias – ou, por vezes, tão só de disparates, à luz do olhar mais desgastado dele. Mas linda que ela ficava em cada rubor que lhe surgia, fruto do seu entusiasmo com a vida, com os sonhos em que, inocentemente, acreditava como planos.

- Vamos?

Veio o empregado com a conta, vieram os mundos paralelos com a realidade. Era o exacto tempo de seguirem os seus caminhos. Distantes.

- Obrigada, gostei do almoço. Temos que repetir.

Não repetiram. Enquanto os passos dela, afastando-se na calçada, ecoavam dentro dele como um réquiem estranhamente alegre, tudo o que ele mais desejava era que se encontrassem de novo. Mas, justamente por isso, pelo que sentia por ela, não queria tocar-lhe (“quando se toca as asas de uma borboleta ela deixa de voar”, pensou), não queria - conforme já estava farto de remoer - alterar-lhe nem o rumo nem, sequer, os tempos certos de cada pedaço de vida que ela haveria de trincar e longamente abençoar. É que, sem que ela soubesse nem que ele lhe desse a entender, amava-a à sua estranha maneira. Ou seja, clandestinamente. Em sabores.

- Ciao.


“Gostei de ti”, foi a última coisa que ele pensou antes de reentrar para a camioneta de turismo. Ao longe, o mar continuava calmo e o Etna adormecido. Ela também continuava. Linda. Para sempre.

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