CUOTIDIANO

terça-feira, outubro 06, 2009

As garças


Quando ela espreitou pela janela, depois de, rodopiando com uma só mão, ter limpo do vidro todo o embaciado de Novembro, extasiou os olhos de tal forma que, de tão ansiosos e puros, o próprio espanto se silenciou.

Limitava-se a observar, imóvel, calada, para não atrapalhar o mundo e não ser apanhada – é que as aulas da sua turma continuavam e ela tinha-se escondido ali, como fazia desde há muito, desde sempre, desde que seus pais lhe haviam dito que já não havia dinheiro para as aulas de dança. E olhava, olhava atentamente as pernas daquelas jovens garças, que se entrelaçavam, desuniam, e depois se entrelaçavam de novo mas ainda no ar; percorria-lhes os braços feitos de arcos e voos e ondulações de caravelas perdidas pelo mar; depois ainda, e apenas com as pálpebras, saboreava-lhes os corpos, ainda jovens demais para serem chamados de corpos, na altura talvez apenas olhos e pouca coisa mais. Enquanto isso, a música serpenteava por entre as raparigas e regressava, ansiosa, às gastas entranhas de um piano velho e roufenho, que se fazia ouvir através dos gemidos estereofónicos das falanges cansadas da própria pianista, ela mesma cansada, cansada da vida e dos sons e das crianças e do seu ordenado miserável,

(À noite voltava a casa, mais sandes menos sandes adormecia, depois erguia-se como uma gigantesca sombra de luz, voava até aos céus, onde tocava para multidões de olhos de tal forma abertos que silenciavam o próprio espanto, depois acordava em sobressalto mas “força força força” e lá adormecia de novo e flutuava de novo e toda aquela gente a aplaudia de novo, de pé, definitivamente, de alma exposta ao ridículo - que é a única forma de amarmos realmente alguma coisa - e ela era amada e adorada e idolatrada todas as noites por gente e mais gente e mais gente ainda e todas as noites havia mais, todos a aplaudiam de pé, sem parar, e acordava outra vez por causa do maldito gato da vizinha, “preciso de adormecer, rápido”, e “força força força”, e lá adormecia de novo até quando a manhã já fosse tarde – apesar de que a tarde ainda era cedo demais para acordar de tanto belo que havia, ainda, para navegar - e tinha de ser, e o chá, e as torradas, tudo brotava do seu palco de pó que era a bancada da cozinha e há que voltar ao piano que aquele piano, seu único companheiro de sempre, tão triste e velho e cansado quanto ela, a aguardava, a aguardava a ela, ela, a pianista cansada)

mais velha que a própria escola, mais dormente que a própria morte, morta que estivesse, mas que ainda conseguia fazer com que as crianças sorrissem e dançassem, dançassem, dançassem.

Teresa continuava a espreitar. Via-as através do seu próprio sorriso saltar, correr como um rebanho perseguido mas de movimentos sincronizados, acossado pelo piano que se arrastava e mal se ouvia - mas, afinal, tudo batia certo: os movimentos, os sorrisos, os corações. De repente, a música parou. Assustou-se. Olhou em volta. Nada de especial, a não ser dois passaritos que, em bruscos movimentos da cabeça, acenavam a sua atenção. Mas tudo recomeçou num dado ponto anterior, corrigiam-se erros que não eram erros, apenas pormenores de adultos que amestravam crianças - nada que a própria Arte e um pouco de tempo não curassem rapidamente. Música. Dança. Paraíso. Subitamente, uma mão no ombro. “O que é que fazes aqui, não devias de estar nas aulas?”. “Sim, devia, desculpe D. Constança”. Constança era a contínua, uma espécie de sótão moral da própria escola, a contínua exemplar mas

(Mais tarde, Constança tomaria o autocarro rumo ao Tejo, o Tejo rumo ao barco, o barco rumo à brisa, a brisa rumo a terra, à terra onde a aguardava um sofá incorporado com um marido que mal suportava, à terra onde tinha conta numa mercearia onde se abastecia do suficiente de carne e álcool de forma a conseguir aturar aquela escola demente, onde os pianos dançavam, as teclas dos dedos tacteavam melodias nas nuvens, onde as garças eram rapariguinhas escanzeladas ansiando pela adolescência. “Garanto-te, ali é tudo maluco!”, desabafava ela para a cerveja que, de tão sóbria, aguentava o seu marido de pé. “É mesmo tudo maluco. Olha, ainda hoje apanhei uma miúda que falta sempre às aulas só para ver as outras dançar. É como te digo, tudo do-i-do!”. Nessa altura, a cerveja já era outra mas percebia perfeitamente a conversa, tal havia sido o rigor com que a anterior a havia informado dos detalhes. Aliás, como toda a gente sabe, as cervejas são muito inteligentes. Constança)

que, de tão farta que estava daquilo tudo, só suspirava pela reforma, da mesma forma que havia suspirado pelo Alain Delon vinte anos antes.

Teresa, qual condenado de Alcatraz mas ainda com resquícios de um sorriso de horas, foi levada à directora da escola, da qual era impossível escapar. Muitos haviam tentado mas, segundo ainda hoje reza a lenda da escola, nenhum havia regressado para contar.

A directora falava, mas Teresa não ouvia. A directora explicava, doutrinava, moralizava, mas Teresa não ouvia, os seus olhos ainda dançavam, seus ouvidos estavam tapados por milhares de colcheias, fusas, semi-fusas e outras coisas ainda mais estranhas que havia aprendido. Afinal de contas, Teresa voava com as garças.

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