Rembrandt
- Queres vir a minha casa ver o meu Rembrandt?
- Rembrandt? O quê? Tu tens um Rembrandt em casa?!
- Não.
Sorriram. Depois riram-se. Muito - ao ponto das palavras se engasgarem. E, como habitualmente sempre que algo se cola na pele e acaba por se entranhar na alma, as palavras tornaram-se completamente irrelevantes. E assim, despojados de tudo - até do tempo -, foram de mão dada para casa dele ver o Rembrandt que ele não tinha. Depois reviraram do avesso os corpos que se queriam – muito - e tudo o mais que tinham que ver, tocar, sentir, saborear. Ou seja, trincar. Tudo. (Vida incluída.)
Prossigamos. Nessa noite fizeram amor até que a madrugada doesse, até que os corpos quisessem, até que as dores esquecessem, até que o tempo parasse, até que a madrugada quisesse, até que o amor doesse. Ou seja, do cetim desse Amor fizeram a noite.
Passaram os dias sem passar. Conseguiram que as horas passassem sem doer – muito pelo contrário; depois atravessaram o dorido rio do dia-a-dia – com idas à casa de banho e tudo e tal – e, mesmo assim, amaram-se. Muito. Constantemente.
Mas passou o tempo, muito tempo; vieram os hábitos, os rituais, os está bem para não me chatear, o cansaço, as desistências, o desagregar, o papel do casamento assinado em pacote com os pré-determinados papéis a desempenhar, que os fizeram actores deles mesmos com guião escrito por outros. Depois engravidaram. Cozinharam. Receberam. Socializaram. Esboçaram sorrisos.
Mais tempo. Deixaram de fazer amor e passaram a ter relações sexuais. Depois deixaram de sorrir um sorriso cúmplice de crime adiado pela pele um do outro para, em troca, se tocarem desculpa lá; depois desleixaram-se, deixando os corpos destilarem a alma pelo lavatório, conjuntamente com os cabelos e os temporais perdidos; depois enrolaram-se nos lençóis e não mais se enroscaram dentro deles. Vestiram pijamas. Lavaram sempre os dentes antes do beijo. Lavaram o beijo. Finalmente, deixaram de ser homem e mulher com minúscula e alma, passando a Marido e Mulher, com uma minúscula muitíssimo maior e com demasiada e previsível calma. Já nada era proibido. Tudo tinha passado a estar legalmente insuportável. (Morte incluída.)
Entretanto, Rembrandt, o propriamente dito e que, como toda a gente sabe, era um simples filho de um pão, confessou que nunca havia existido – excepto, no corpo, na alma, no coração, nos dedos e nos lábios sequiosos de dois amantes sem fonte mas à descoberta e que, séculos depois, o haveriam de inventar. Sorriu. Nada como ser um artista de futuro.
Etiquetas: conto/crónica
2 Commenários:
Soberbo.
Beijos.
By Maria P., at 30 de abril de 2010 às 05:57
Lavaram o beijo
Hum-hum.
By APC, at 3 de maio de 2010 às 02:50
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