Ida ao dentista
Ontem fui ao dentista. Ao Pedro Maria Ânus. Sim, eu sei que é um nome um bocado ridículo, passível de trocadilhos como “Pedro Mariano” – confesso que também os faço. Mas sejamos correctos, que o homem é um grande profissional - seja lá do que for. Bom, recomeçando.
Ontem fui ao Pedro Mariano. Ah, desculpem. Ao Ânus. Melhor, ao Dr. Ânus, assim é que é. Adiante. Chegado lá, cumprimentei, quase em surdina, a recepcionista
1º mistério – Porque é que as pessoas falam baixinho no dentista? Será para não abafar o maravilhoso som das brocas furando os dentes - e, como dano colateral, os tímpanos de toda a gente?
e sentei-me, esperando a minha vez. Peguei numa revista - obviamente “do coração” – e, ao folheá-la, estranhei a existência de múltiplos artigos sobre a passagem do milénio. “Outra vez”, pensei? Só algum tempo depois é que reparei na data – eram dessa altura.
2º mistério – Porque é que as revistas das salas de espera dos dentistas têm, pelo menos, cinco anos? E, já agora, mais de vinte folhas rasgadas? E, pior ainda, a Lili Caneças, mais rasgada ainda?!
Devolvi a revista à companhia de suas amigas de longa data – divirtam-se, garotas! - e olhei à minha volta. Todos os outros condenados estavam como eu, divididos – por um lado ansiosos, com a esperança de serem eles os próximos a entrar para ficar sem dores; por outro, esperando que fosse a vez de outro pacóvio qualquer por... puro e instintivo medo! Enfim... à minha frente, a recepcionista namorava com o próprio telefone,
3º mistério – Porque é que as recepcionistas também usam bata branca? Será para não se sentirem inferiores, como quem diz “reparem bem, eu também sou enfermeira e, ainda por cima, sei atender telefones, coisa que as outras não sabem fazer. Além disso, a minha bata está mais branquinha do que a delas, nunca tem sangue.”
telefone esse que, diga-se, já estava com um ar um pouco farto – afinal sempre havia alguém com bom senso ali. Sem nada para fazer, a não ser ouvir a 7ª sinfonia para brocas e gritos em dó maior, e embora não estivesse com muita vontade, resolvi ir à casa de banho,
4º mistério – Porque é que, nos dentistas, se pede à recepcionista para ir à casa de banho? Será que, como na escola, é para os adultos verem que nos portamos bem, somos bons meninos, e a seguir nos tratam – “tratam” aqui cai bem, tem duplo sentido, o dentista inspirou-me – melhor? Já agora, porque será que, nestes consultórios, o vulgo “WC” é normalmente elevado à superior condição de “lavabo”?
nem que fosse para conviver com o meu único amigo ali disponível. Quando voltei, sem dar tempo, sequer, para me sentar outra vez, finalmente (ou seria infelizmente?) chegou a minha vez. Chegado à porta, pedi para entrar.
5º mistério – Se é o médico que nos manda chamar, donde virá o servilismo idiota de “pedir licença”?
Fui superiormente autorizado a fazê-lo, sentei-me na cadeira da câmara dos horrores e esperei pelo matador, empunhando firmemente a seringa, dançando em olés mentais de fazer faísca e... lá vai disto – espetou-me a agulha, numa chicuelina cheia de garbo e profissionalismo, na zona mais roxa da minha pobre gengiva em pânico. Depois de outras cinco bandarilhadas, ao fim das quais tinha anestesiado não só a dita gengiva como o lábio, a sobrancelha e mais 324 cabelos - que ficaram espetados durante quatro horas, de tal forma que mais parecia saído de um qualquer ritual satânico -, achou-me pronto para a estocada final – o arranjo do dente. Magnânimo, autorizou: “pode cuspir!”.
6º mistério – Porque será considerada uma benção o acto de dar uma ‘escarradela’? Será porque imaginamos a cara do assassino no lavatório? E se esta moda pega para outras profissões liberais? Por exemplo, imaginemos que, a meio de uma reunião de engenharia, toda a gente cheia de gravatas e salamaleques, quem a dirige diz “podem cuspir”? Tudo aos gritos “luta de escarros, luta de escarros!”, a seguir... – bom, chega!
Aproveitei aquele momento de generosidade e... aí vai amarela! De regresso à tortura, mais buraco menos buraco, mais massa menos massa, fiquei consertado e lá me pirei dali para fora, agradecendo parvamente. De regresso à sala de espera, o único grande momento do dia – o olhar para os outros condenados! Um a um contemplei-os vagarosamente, rodando o olhar, como se dissesse “agora és tu, não, afinal és tu, não, enganei-me, és tu...”, com a saborosa certeza de que não seria eu. Depois desse pequeno gozo sádico, voltei-me para a recepcionista e perguntei-lhe quanto era, ao que ela – que, naquele momento, já me parecia com muito melhor aspecto, pelo menos dois whiskies e meio melhor – me respondeu com um qualquer número que ultrapassava o pornográfico - roçando, até, o Cavaco Silva completamente nu a fazer jogging. Paguei (conquistando, assim, a hipótese mais que provável de não almoçar nos três meses seguintes) e agradeci na mesma,
7º mistério – Porque será que, sempre que vamos a uma qualquer loja, e nos pedem um preço elevadíssimo por qualquer coisa protestamos, pedimos desconto, choramos, até convidamos a vendedora gorda, sebosa e borbulhosa para jantar se for preciso - e no dentista pagamos e agradecemos?
com uma cara misto de parvo com “à banda”. Em troca, recebi um simpático cartão-convite-se-não-vens-‘tás-lixado com as minhas próximas marcações - mas sempre em surdina, não fossemos (eu, aquela maravilhosa enfermeira de impecável bata branca e o desesperado telefone digital) estragar o orgasmo iminente do Dr. Ânus, ao som esplendoroso da 7ª sinfonia para brocas e gritos em dó maior.
PS – O nome do meu dentista é MESMO Pedro Mariano – nem a minha imaginação retorcida e delirante conseguiria inventar uma coisa dessas.
Ontem fui ao Pedro Mariano. Ah, desculpem. Ao Ânus. Melhor, ao Dr. Ânus, assim é que é. Adiante. Chegado lá, cumprimentei, quase em surdina, a recepcionista
1º mistério – Porque é que as pessoas falam baixinho no dentista? Será para não abafar o maravilhoso som das brocas furando os dentes - e, como dano colateral, os tímpanos de toda a gente?
e sentei-me, esperando a minha vez. Peguei numa revista - obviamente “do coração” – e, ao folheá-la, estranhei a existência de múltiplos artigos sobre a passagem do milénio. “Outra vez”, pensei? Só algum tempo depois é que reparei na data – eram dessa altura.
2º mistério – Porque é que as revistas das salas de espera dos dentistas têm, pelo menos, cinco anos? E, já agora, mais de vinte folhas rasgadas? E, pior ainda, a Lili Caneças, mais rasgada ainda?!
Devolvi a revista à companhia de suas amigas de longa data – divirtam-se, garotas! - e olhei à minha volta. Todos os outros condenados estavam como eu, divididos – por um lado ansiosos, com a esperança de serem eles os próximos a entrar para ficar sem dores; por outro, esperando que fosse a vez de outro pacóvio qualquer por... puro e instintivo medo! Enfim... à minha frente, a recepcionista namorava com o próprio telefone,
3º mistério – Porque é que as recepcionistas também usam bata branca? Será para não se sentirem inferiores, como quem diz “reparem bem, eu também sou enfermeira e, ainda por cima, sei atender telefones, coisa que as outras não sabem fazer. Além disso, a minha bata está mais branquinha do que a delas, nunca tem sangue.”
telefone esse que, diga-se, já estava com um ar um pouco farto – afinal sempre havia alguém com bom senso ali. Sem nada para fazer, a não ser ouvir a 7ª sinfonia para brocas e gritos em dó maior, e embora não estivesse com muita vontade, resolvi ir à casa de banho,
4º mistério – Porque é que, nos dentistas, se pede à recepcionista para ir à casa de banho? Será que, como na escola, é para os adultos verem que nos portamos bem, somos bons meninos, e a seguir nos tratam – “tratam” aqui cai bem, tem duplo sentido, o dentista inspirou-me – melhor? Já agora, porque será que, nestes consultórios, o vulgo “WC” é normalmente elevado à superior condição de “lavabo”?
nem que fosse para conviver com o meu único amigo ali disponível. Quando voltei, sem dar tempo, sequer, para me sentar outra vez, finalmente (ou seria infelizmente?) chegou a minha vez. Chegado à porta, pedi para entrar.
5º mistério – Se é o médico que nos manda chamar, donde virá o servilismo idiota de “pedir licença”?
Fui superiormente autorizado a fazê-lo, sentei-me na cadeira da câmara dos horrores e esperei pelo matador, empunhando firmemente a seringa, dançando em olés mentais de fazer faísca e... lá vai disto – espetou-me a agulha, numa chicuelina cheia de garbo e profissionalismo, na zona mais roxa da minha pobre gengiva em pânico. Depois de outras cinco bandarilhadas, ao fim das quais tinha anestesiado não só a dita gengiva como o lábio, a sobrancelha e mais 324 cabelos - que ficaram espetados durante quatro horas, de tal forma que mais parecia saído de um qualquer ritual satânico -, achou-me pronto para a estocada final – o arranjo do dente. Magnânimo, autorizou: “pode cuspir!”.
6º mistério – Porque será considerada uma benção o acto de dar uma ‘escarradela’? Será porque imaginamos a cara do assassino no lavatório? E se esta moda pega para outras profissões liberais? Por exemplo, imaginemos que, a meio de uma reunião de engenharia, toda a gente cheia de gravatas e salamaleques, quem a dirige diz “podem cuspir”? Tudo aos gritos “luta de escarros, luta de escarros!”, a seguir... – bom, chega!
Aproveitei aquele momento de generosidade e... aí vai amarela! De regresso à tortura, mais buraco menos buraco, mais massa menos massa, fiquei consertado e lá me pirei dali para fora, agradecendo parvamente. De regresso à sala de espera, o único grande momento do dia – o olhar para os outros condenados! Um a um contemplei-os vagarosamente, rodando o olhar, como se dissesse “agora és tu, não, afinal és tu, não, enganei-me, és tu...”, com a saborosa certeza de que não seria eu. Depois desse pequeno gozo sádico, voltei-me para a recepcionista e perguntei-lhe quanto era, ao que ela – que, naquele momento, já me parecia com muito melhor aspecto, pelo menos dois whiskies e meio melhor – me respondeu com um qualquer número que ultrapassava o pornográfico - roçando, até, o Cavaco Silva completamente nu a fazer jogging. Paguei (conquistando, assim, a hipótese mais que provável de não almoçar nos três meses seguintes) e agradeci na mesma,
7º mistério – Porque será que, sempre que vamos a uma qualquer loja, e nos pedem um preço elevadíssimo por qualquer coisa protestamos, pedimos desconto, choramos, até convidamos a vendedora gorda, sebosa e borbulhosa para jantar se for preciso - e no dentista pagamos e agradecemos?
com uma cara misto de parvo com “à banda”. Em troca, recebi um simpático cartão-convite-se-não-vens-‘tás-lixado com as minhas próximas marcações - mas sempre em surdina, não fossemos (eu, aquela maravilhosa enfermeira de impecável bata branca e o desesperado telefone digital) estragar o orgasmo iminente do Dr. Ânus, ao som esplendoroso da 7ª sinfonia para brocas e gritos em dó maior.
PS – O nome do meu dentista é MESMO Pedro Mariano – nem a minha imaginação retorcida e delirante conseguiria inventar uma coisa dessas.
9 Commenários:
Boas reflexões odontológicas!
Gostei do 7º. Mistério!
Bom fim de semana, amigo CUtidiano!
By zé lérias (?), at 13 de janeiro de 2007 às 03:13
Fantástico... Formal e originalmente! Bela aliança entre inspiração e jeito para a coisa. Se fosses meu filho morria de orgulho. Assim fico viva mas... Orgulhosa! :-)))
Adorei as dúvidas, eheheh... Mas sobre batas brancas tenho as minhas teorias. Partilho-as depois, de indumentária a condizer, para ser mais convincente. LOL :-)))
By APC, at 13 de janeiro de 2007 às 04:19
"Ida ao Dentista"!
Está explicada a "overdose" de ...
Bom fim de semana:)
By Maria P., at 13 de janeiro de 2007 às 13:26
S-B,
Já sabes que adoro vir aqui. Adoro o que escreves, como escreves.
Dessa vez, a primeira leitura me fez rir muito (como sempre acontece) mas, depois comecei a sentir o que realmente o tema me provoca - FOBIA.
Porque é que os dentistas sempre me passam a impressão de que são sádicos nazistas, em plena sessão de tortura?
Grande beijo procê
By Leticia Gabian, at 13 de janeiro de 2007 às 13:57
Sabe tão bem! Não a ida ao dentista, claro... Mas a leitura dos seus textos!
Não devo ter jeito para mistérios, digo eu. Pelo menos desses. Acho que nunca tentei ainda.
Mas duas coisas (coisas?!!!) me assaltaram depois de ler este texto:
1. Poderia haver aí qualquer referência à TVI, estação que sempre encontro a funcionar nas salas de espera e que, convenhamos, combinam bem com o quadro.
2. Este texto tem um formato interessante que poderia ser aplicado a outros contextos. Por exemplo: Porque não fazer um sobre a utilização dos blogs?
Um abraço de admiração.
By Anónimo, at 13 de janeiro de 2007 às 18:05
Vou tentar lembrar-me deste "post" a próxima vez que lá tiver de ir :)(normalmente entro em estado choque gelada e saio voando e achando o mundo muito mais bonito, mesmo quando pago :)
Um beijinho
By Anónimo, at 13 de janeiro de 2007 às 22:50
Imaginação é coisa k não te falta...
Fico-me aki perdida em pensamentos, a perguntar aos botões da bata não tenho,...
k te faltará então?;)
Beijos e o tal abraço
By Ana Luar, at 14 de janeiro de 2007 às 00:22
Óh meujamigos!!! o que ié isto??
-"...quem a dirige diz “podem cuspir”? Tudo aos gritos “luta de escarros, luta de escarros!”, a seguir..."-
Onde ides parar com estaje
combersas?
E...
-"...achou-me pronto para a estocada final – o arranjo do dente. Magnânimo, autorizou: “pode cuspir!”."-
Queié isto xenhores???
Porque falaije em Dr. Ânus?
Bom...
By Anónimo, at 17 de janeiro de 2007 às 01:08
Hoje fui eu ao dentista. O meu também se chama Pedro. As revistas também são do ano passado, mas se formos a ver bem o ano passado não foi assim há tempo tempo e lá estava a assistente de bata branca a sussurrar coisas enquanto o dr me aplicava um flúor-não-sei-quê na mó. Afinal, a odontologia é a mesma coisa em todo o lado. :)
By Anónimo, at 17 de janeiro de 2007 às 18:25
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