CUOTIDIANO

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Passagem de ano

Sentado nas escadas que dão acesso ao sótão das recordações por criar, olhei a noite através da nebulosa que me transporta - com vista sobre a minha eventual alma - nesta estranha viagem a que chamo “vida” – ou, quando bebo demais, “Zé”. Tentei esquecer-me, esquecer-te, esquecer tudo, esquecer – apenas - carregando no escape do portátil que guardo escondido por detrás do ventrículo direito - mas que, por azar, parece que anda avariado desde há uns tempos a esta parte. Depois lembrei. Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Desci as escadas, em direcção ao quarto - crescente do meu lado lunar. Ao lado da cama poisei o fogo com que afugento o meu tempo a passar. Depois desembainhei a espada que, cobardemente, combate os meus medos com pomadas contra a comichão e poisei-a junto à cómoda - onde guardo os olhares de soslaio. Então deitei-me. Sob a persa forma de gato ou de feto - ou de bolo - e como que no regaço de uma nuvem sem água, resolvi adormecer, esquecendo até a própria sensação de nada. Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Esticando-me torcicolicamente, olhei lá para baixo, para a rua. Vi luzes disfarçadas de desalmadas almas, recicladas pelos Deuses dos sem-abrigo - aquelas que, de tão humanas que são, também morrem na voraz caça de si mesmas, de um único minuto seu que seja. Mas deixei-me ficar querendo partir, olhando, entorpecendo, com um estranho sabor a gerúndios e a deserto na boca, sabendo o mal a que sabe sempre esta excessiva dose de destino – e que, placidamente, nos vai conduzindo à loucura (ou ao próximo semáforo). Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Respirei fundo. Momentaneamente fiquei sem alma, atrasada que estava (“não me digas que ficaste outra vez a beber um copo com aquela alma loura do 3º esquerdo, caramba?”), quase perdida em relação a mim, aos meus passos, ao que abandonei numa qualquer esquina imaginária do meu corpo. Olhei para mim. Respirava, é certo. Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Revolvi-me na cama. Sem “sutra”. Sem sono. Então resolvi sair, ver luzes, sentir brisas, criar brechas em mim. Fechei os olhos e andei sem tempo, sem direcção, sem silêncio, sequer. Parei. Na loja de conveniência bebi sedes dos outros. Soube-me bem, confesso. Saí. Respirei o ar fresco, como refresco da alma, porque é preciso, porque às vezes preciso, ou apenas porque sim - como razão, já chega bem. Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Inconvenientemente, passei ao lado de um relógio que não me cumprimentou. Perguntou-me as horas, o incompetente, disse-lhas, ele agradeceu. Em troca, deu-me um ponteiro (o maior, claro!) e eu agradeci também (convém sempre ser educado com o tempo, não vá esgotar-se-lhe a paciência para nós). Ou seja e em suma, a partir de agora as horas doem menos porque não há minutos, está decretado. Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Não sei onde estás, com quem estás. Estranhamente, não sei onde estou, só sei com quem não estou. Sei, também, de uma noite – esta - que há que percorrer sem saber porquê, que tem um qualquer caminho por descobrir, sem qualquer mapa de fogo que nos ajude - e que há que atravessar sem pontes, sem margens para dúvidas, com dores pesadas e, poisado na mão, apenas um livro do Lobo Antunes. O das crónicas, sabes? Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Entretanto passam as horas, sem minutos agora. Olho à volta - as estrelas vomitam sono em hálito de Bacardi. Entro num estranho bar estranho, com pessoas e tudo. Estranhas pessoas ou apenas pessoas apenas. As sombras olham-me, desconfiadas, e eu digo apenas que te espero apenas, sob o olhar altivo de um copo um, o único e último resistente da sobriedade. Estranhamente, rio-me. Rio-me mais. Rio-me mais ainda. Desato-me a rir ao desatar-me de amarras, suspenso de um estranho gozo suspenso de me julgar vivo. Mas

Que farei com esta noite, imensa, sem ti?

Saio. Vejo o nascer do Sol sobre os barcos, sobre as lágrimas, afugentando a noite que percorre, beijando na despedida, telhados e tristezas. O Tejo sorri-me, atira-me à cara a maresia envergonhada dos estuários. Eu? eu guardo comigo os passos, os cheiros e uma enorme sede de ti. Mas

Amanheceu. Que farei contigo, imensa, agora sem noite?

9 Commenários:

  • E ainda dizem que a noite não é boa conselheira... Deve ser porque nunca passaram aqui por este albergue, caso contrário não quereriam outra vida que não fosse a da noite...

    Ilustre, um grande abraço e que o novo ano traga muita companhia para essa noite que nunca acaba e que nos deixa palavras tão belas.

    By Anonymous Anónimo, at 5 de janeiro de 2007 às 12:52  

  • E onde estava ela?
    E o que fizeste sem ela?
    E o que farias com ela?
    E porque não estava ela?

    Desculpa-me... Eu sou assim!...
    [cheia de perguntas de retórica]

    Mas, essencialmente, uma orgulhoa fã das tuas palavras brilhantes.
    Acho até que as vi, a abrilhantarem de significado um imenso fogo de artifício longuínquo.

    !!!

    By Blogger APC, at 5 de janeiro de 2007 às 19:31  

  • Li e gostei, por isso continuo fã do blogue.

    Um bom fim de semana.

    By Blogger zé lérias (?), at 6 de janeiro de 2007 às 05:08  

  • Primeiro: Parabéns pela poesia deste texto agridoce.

    Segundo: Não sei o que fiz de errado, mas não consegui publicar o teu amável comentário no meu blog. Se quiseres ter a gentileza de o reenviar, tentarei ser mais bem sucedida.

    Um beijo.

    By Blogger Licínia Quitério, at 6 de janeiro de 2007 às 10:02  

  • Apesar da tristeza (bela neste texto belo), desejo-te um bom ano.

    By Blogger M., at 6 de janeiro de 2007 às 10:53  

  • Ke farás comigo?
    Abraça-me!
    Apenas isso...Abraça-me

    A.Luar

    By Blogger Ana Luar, at 7 de janeiro de 2007 às 15:24  

  • Foi das passagens de ano mais tristes e, ao mesmo tempo, um dos regressos mais felizes.

    Há palavras que embriagam mais que qualquer champanhe. Um brinde!

    By Blogger APC, at 8 de janeiro de 2007 às 20:26  

  • Puxa!
    Já perdi a conta das vezes que li e reli a tua "Passagem de ano". Amigapoema e eu encabeçamos o fã clube das tuas "palavras brilhantes".

    Beijo pra ti, S-B

    By Blogger Leticia Gabian, at 9 de janeiro de 2007 às 14:29  

  • Este foi o teu melhor post.
    Desculpa... mas foi.
    Tanto por dizer em horas que fizeram a passagem apenas de si próprias.



    Beijos

    By Anonymous Anónimo, at 22 de janeiro de 2007 às 02:01  

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