CUOTIDIANO

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Choveu muito? Olhe que não... (o artigo que o director do DN não quis publicar)

O copo avançou mesa fora e, mesmo à beirinha, hesitou. Mas farto da sua reles condição de baratucho do Continente e frustrado por não ser um flute para champanhe, atirou-se, estilhaçando-se no chão; em suma, “o copo partiu-se”. Evidentemente, ninguém o empurrou – suicidou-se...

Invariavelmente também, sempre que protestamos na EDP por ter recebido uma dupla facturação, a resposta é “o computador enganou-se” – claro que ninguém criou o software, ninguém introduziu dados. Por outras palavras, culpa-se o que não pode responder de volta (quem cala, consente...) - como sempre, a desresponsabilização total.

Vem tudo isto a propósito das inundações que assolaram o nosso país em Novembro passado, a nível quer de zonas interiores - essencialmente com problemas de saneamento pluvial - quer ribeirinhas, com transbordamentos não controlados. Claro que a razão apontada foi a habitual: “choveu muito...”. Mas “muito” comparado com quê? Falemos, então, de comparações.

Se compararmos os valores da precipitação ocorrida em Portugal neste Outono (Setembro a Novembro) com os médios para a mesma altura observam-se, de facto, registos mais elevados, tendo este sido o mais chuvoso dos últimos 42 anos, com um valor 180% superior à média. Por exemplo, em Lisboa, foi o segundo mais chuvoso desde 1901.

Mas de modo a saber-se qual é o verdadeiro culpado pelos problemas a que assistimos ao vivo, nos jornais e na televisão, a comparação a efectuar não deverá ser essa, mas sim entre os valores da precipitação ocorrida e os que, legal e regulamentarmente, terão sido adoptados nos projectos que deram origem às obras de saneamento e de regularização fluvial – isto já para não falar dos “não-projectos” e das “não-obras”. Fazendo essa comparação utilizando as precipitações máximas ocorridas na região de Lisboa (a título exemplificativo) no passado Outono, verifica-se que:

- Em termos de colectores, com durações de chuvada de 10 e 20 minutos (críticas para dimensionamento) atingiu-se, respectivamente, 75% e 91% do valor regulamentar;
- Em relação a ribeiras, para períodos inferiores a 1 hora, o máximo foi de 64% do determinado legalmente; para superiores, foi sempre inferior a 50%.

Assim, constata-se que a culpa não é da “coitada” da Natureza, a suspeita do costume; houve foi decisões mal (ou não) tomadas, projectos mal elaborados e obras mal construídas. Ou seja, não “choveu muito”, o ser humano é que meteu água.

Então mas, afinal, quais foram as verdadeiras causas? Referindo apenas algumas:
- a desregrada ocupação do solo consequência, entre outros, do peso da construção civil nas autarquias e de deficiente ou não cumprido planeamento urbanístico;
- a falta de limpeza e manutenção, constatável no assoreamento e no lixo acumulado em leitos e margens, resultado do não cumprimento da lei, da inexistência de acções fiscalizadoras e da falta de vontade política e de meios materiais e humanos para a fazer cumprir;
- a má concepção e/ou o sub-dimensionamento de obras, verificável, por exemplo, em colectores e passagens hidráulicas que obstruem o escoamento, fruto de obscuros ou inexistentes licenciamentos e de incompetentes intervenções por parte, inclusive, de entidades oficiais;
- finalmente, as descargas das barragens, função da gestão das bacias hidrográficas, ponderada com os interesses energéticos em jogo.
Como facilmente se percebe, em todas estas causas está a mão humana e não a Mãe Natureza.

Em conclusão, giramos adequadamente os nossos sistemas hídricos e olhemos para a Natureza como aliada e não como a causadora dos nossos males - não nos esqueçamos que a verdade inconveniente é que o que se passa é precisamente o inverso.

PS - Durante o Governo Guterres e após graves inundações na altura ocorridas, a deputada socialista Maria do Céu Lourenço dizia, na Assembleia da República, que "as alterações climatéricas derivadas do efeito estufa provocaram uma situação anormal, impensável e imprevisível de intempérie, sendo essa e não outra a verdadeira razão dos prejuízos verificados no Baixo Mondego em particular e no País em geral". Mais extraordinário ainda: "lançar acusações contra o Governo, nesta matéria, para lá de caricato, é pura demagogia e corresponde a uma forma inaceitável de fazer política". Lindo!
PPS - Será que o director do DN concorda com os disparates acima citados? ou, por outro lado, será que também não quer "ver" as verdades que não dão jeito ao poder instalado?

4 Commenários:

  • Num país onde a tentativa de delegar responsabilidades a entidades (supostamente) competentes sai sempre gorada, "vamos" continuar a pensar nos problemas como inevitáveis ou como falta de sorte...

    By Anonymous Anónimo, at 1 de fevereiro de 2007 às 13:56  

  • Ah, valente! Que saudades tinha eu deste texto!!! Brilhante, meu querido; brilhante!!! :-)))
    Um beijo.

    By Anonymous Anónimo, at 1 de fevereiro de 2007 às 15:01  

  • Aahh!!!
    Eu pensei que quando chovia era para todos...
    Mais uma vez se comprova o ditado:
    "Mais um dia... mais uma minhoca"
    Sempre a aprender, pelos vistos no Governo não chove! Nós todos é que estamos a ver mal!!!!!!
    Quanto ao Diário de Noticias nada me espanta. O Drector é com toda a certeza formado em Matemáticas!!!contas feitas "noves fora nada" + "Pi=3,14" x "o quadrado dos catetos..." - Ordenado "churudo" = "Épá...(não é o gelado), caga pa esta merda que ninguém pecisa de saber destas cenas. Não temos aí nada que meta mortos ou de criminoso lá pa cima pó norte?"

    Tá Bem.

    By Anonymous Anónimo, at 1 de fevereiro de 2007 às 23:10  

  • O segundo comentário anónimo é meu, como creio que terás percebido (contudo...). Saiu assim, e só hoje reparei nisso. aconteceu duas vezes: neste post e no seguinte (e não mais!, o que importa referir porque não quero confusões). Please sorry me! B*

    By Blogger APC, at 5 de fevereiro de 2007 às 00:26  

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