Com sabor a pêssego
Convidei-a para jantar num restaurante árabe de comida italiana - ela aceitou. Lá chegados, indicaram-nos uma romântica mesa bem ao fundo, meia luz, meio isolada. Escolhi um bife sem proteínas e ela umas massas sem hidratos de carbono. Enquanto esperávamos, fomos falando sem som e tocando-nos sem pele. Chegada a refeição, reparei que se tinham enganado: em vez do bife sem proteínas, tinham trazido um ananás sem vitaminas, com sabor a cipreste e perfumado com aloé vera. “Não faz mal”, disse por mim a curiosidade – já me tinham falado naquele prato, há muito que o queria experimentar.
- Para beber?
- Uma água sem líquido e uma cerveja com álcool.
- Lamento, mas cerveja com álcool não temos.
- Deixe estar, partilhamos a água.
Ao longe, pela janela sem vidro, olhámos uma lua de plástico, de sedutora cor lilás, enquanto ouvíamos um cantor que se esforçava por não emitir qualquer som. Degustámos a comida - sem a trincar, claro -, enquanto trocávamos promessas que, como qualquer promessa que se preze, seriam impossíveis de cumprir. Algum tempo depois, levaram-nos os pratos, evidentemente intactos.
- Sobremesa?
- Uma trouxa de ovos sem ovo e um café sem chávena, por favor.
- Com certeza.
Paguei uma conta sem algarismos, apresentada numa fusão de braille com telepatia, enquanto ainda saboreava a estranha amargura daquele amor profundo. Levei-a a casa e, quando ela me perguntou se queria subir à sua suburbana sub-cave para um copo sem copo, inventei uma desculpa qualquer para recusar e vir embora - o que a deixou ligeiramente desconfiada.
“Não faz mal”, pensei, “o risco vale a pena” – é que tinha um encontro combinado à meia-noite com a minha querida boneca insuflável, feita à perfeita imagem da minha namorada mas, aquela sim, com verdadeiro sabor a mulher.
Ah, e dançámos um saboroso tango antes de fazermos amor com genuíno sabor selvagem.
- Para beber?
- Uma água sem líquido e uma cerveja com álcool.
- Lamento, mas cerveja com álcool não temos.
- Deixe estar, partilhamos a água.
Ao longe, pela janela sem vidro, olhámos uma lua de plástico, de sedutora cor lilás, enquanto ouvíamos um cantor que se esforçava por não emitir qualquer som. Degustámos a comida - sem a trincar, claro -, enquanto trocávamos promessas que, como qualquer promessa que se preze, seriam impossíveis de cumprir. Algum tempo depois, levaram-nos os pratos, evidentemente intactos.
- Sobremesa?
- Uma trouxa de ovos sem ovo e um café sem chávena, por favor.
- Com certeza.
Paguei uma conta sem algarismos, apresentada numa fusão de braille com telepatia, enquanto ainda saboreava a estranha amargura daquele amor profundo. Levei-a a casa e, quando ela me perguntou se queria subir à sua suburbana sub-cave para um copo sem copo, inventei uma desculpa qualquer para recusar e vir embora - o que a deixou ligeiramente desconfiada.
“Não faz mal”, pensei, “o risco vale a pena” – é que tinha um encontro combinado à meia-noite com a minha querida boneca insuflável, feita à perfeita imagem da minha namorada mas, aquela sim, com verdadeiro sabor a mulher.
Ah, e dançámos um saboroso tango antes de fazermos amor com genuíno sabor selvagem.
Etiquetas: conto/crónica
7 Commenários:
Oh....!
By Leticia Gabian, at 1 de abril de 2007 às 01:19
Serão os pêssegos as únicas frutas com sabor a fruta?
Olha que os Sugus esforçam-se há anos-não há direito!
E também existe o Tang, o verdadeiro sumo de fruta sem fruta...
E tanta coisa que podia ser e que não é. Vai sendo. A vida, por exemplo.
Beijos (sem rosto,é claro, e sem lábios, consequentemente)
By A, at 1 de abril de 2007 às 02:53
"Adorei a fusão de braille com telepatia... conta boa de se pagar, essa!".
É... Quando se tem uma mulher de medidas perfeitas em casa à espera, e ainda por cima de plástico, que não se zanga nem se recusa... Dá vontade de voltar depressa de um encontro sem sabor (lololol:-).
A metáfora: temos o nosso canto, o nosso ritmo, os nossos hábitos, o nosso nós... Ou os sabores que nos apresentam nos dão a volta ao paladar, ou o tango é sempre "vira o disco e dança o mesmo".
Sabes o que eu te digo? Vivam as proteínas e as vitaminhas e os hidratos e as calorias, e o perú com ervas e natas (delicioso!) e o pêssego com calda de chocolate, e os corpos com pele e as bocas com beijos, e...
By APC, at 1 de abril de 2007 às 03:52
Gostei da ironia e da decepção subentendidas.
By M., at 1 de abril de 2007 às 10:58
Perfeito, perfeito.... é este post!
Sim, para aquela coisa com 0% e ainda por cima com pêssego, não há muita pachorra...
Antes um Bongo, o bom sabor da selva...
Abraço.
By Nuno Guronsan, at 1 de abril de 2007 às 13:52
E o sabor a pêssego? Não estava nelas,nem nele...
Gosto do cheiro e dos sumos espremidos na hora...Fazem-me pensar na Grécia, no sol e em estar com quem gosto sempre.
By Anónimo, at 1 de abril de 2007 às 19:51
Dizem - não que já tenha experimentado,mas coisa que nunca direi nunca - que as insufláveis 3 G - a partir de 5000 € - até se babam... Com esta coisa das relações complicadas e efémeras, com esta coisa da virtualidade avassaladora, será que não é tempo de reiventarmos o famoso «orgastrom» do Woody Allen (ABC do Amor), tipo cabine telefónica de prazer à la minute. Simples, asséptico, fiel, funcional, descomplicado, e que só cobra moedas...
Um abraço
By Madrigal, at 2 de abril de 2007 às 11:39
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