CUOTIDIANO

segunda-feira, maio 05, 2008

Trigóleo

- Mas o que é que julgas que estás a fazer?!

Já estava farto. Mas é que era todos os dias o mesmo. Sempre que comia alguma coisa, uma reles carcacita que fosse, lá vinha ela.

- Mas o que é que julgas que estás a fazer?! Pára de comer imediatamente senão não temos combustível suficiente para ir visitar a minha mãe este fim-de-semana!

Havia emagrecido dez quilos (“até que estás com muito melhor aspecto, Alfredo” – o que essa frase o irritava!) desde que Portugal assinara o acordo europeu sobre biocombustíveis e a mulher se tornara tresloucadamente patriota. Para o carro ia o fillet mignon, o churrasco com os amigos, a cervejola do futebol, o pudim flan do boca doce e, para ele, os (eventuais) restos.

- Mas o que é que julgas que estás a fazer?! Então e como é que amanhã querias que eu levasse os miúdos à escola, hã? A pé, seu egoísta?!

Enquanto isso, o carro arrotava na garagem, atestado que estava de bifes do lombo com puré de maçã. Tinha de fazer alguma coisa!

Assim foi. Um dia, ao acordar, sua eco-esposa não o viu.

- Deve estar a comer o doce de ginja que estou a guardar para irmos ao Gerês, aquele safado!

Correu para a cozinha. Nada. Procurou na sala. Nada. Despensa, quartos dos miúdos, casas de banho. Nada, sempre nada.

- Onde se terá metido? – repetiu-se intrigada e, simultaneamente, furiosa.

Em desespero de causa, foi até à garagem, o único sítio onde ainda não tinha ido.

- Mas o que é que julgas que estás a fazer?! – gritou em pânico mal o viu sugando sofregamente, por uma palhinha de plástico, uma bela de uma refeição completa (variada e bem equilibrada do ponto de vista nutricional, diga-se) do depósito de combustível do carro.

Cumprimentou-a com um arroto, o primeiro desde há muito, muito tempo.

Continuou a sugar.

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NOTA: Este foi o meu pequeno, minúsculo contributo (obviamente parvo) para tentar despertar algumas consciências para o crime que é, actualmente, a produção de biocombustíveis. Infelizmente, Portugal, qual novo rico de tudo o que parece "verde" - curiosamente liderado por um antigo secretário de estado do ambiente com nome de grande pensador e filósofo -, está a aderir entusiasticamente à moda, ao ponto de querer, inclusivamente, antecipar a meta dos 10% (dos combustíveis totais) preconizada pela União Europeia.

Sublinho o que é óbvio: esta pseudo-ecologia, somada à especulação mundial do petróleo que se expandiu, qual vírus, para os bens alimentares essenciais, começa a trazer gravíssimas consequências para toda a Humanidade, principalmente - e como sempre -, para os que nada têm. A não ser fome.


Acrescento extracto de um artigo do “Diário de Notícias” que me parece bastante elucidativo do problema que temos – todos – em mãos.



Biocombustível é "crime contra a Humanidade"

O perito das Nações Unidas Jean Ziegler pediu a uma comissão da Assembleia Geral da ONU uma moratória de cinco anos na produção de biocombustíveis, para permitir desenvolver novas tecnologias e estabilizar os preços dos alimentos.
Num só ano, o custo do trigo duplicou e o de milho quadruplicou, devido ao crescente interesse nos biocombustíveis, considerados boa alternativa ao petróleo. Mas, para o sociólogo suíço, estes produtos são "um crime contra a Humanidade".
Segundo diz o perito da ONU, os biocombustíveis estão a provocar o aumento vertiginoso no preço dos alimentos, com potenciais efeitos catastróficos nos países em desenvolvimento, sobretudo nas camadas mais pobres da população.
Uma em cada seis pessoas passa fome, ou seja, um total de 854 milhões. O flagelo atinge as crianças de forma desproporcionada. Segundo a ONU, o planeta produz alimentos suficientes para alimentar 12 mil milhões de seres humanos, quase o dobro da população mundial. Mesmo assim, o número de pessoas severamente mal nutridas subiu, nos últimos 30 anos, de 80 milhões para 200 milhões. Em cada dia que passa, morrem de fome, ou das suas consequências directas, 100 mil pessoas.
Por outro lado, a ciência está a evoluir depressa no campo dos biocombustíveis, acrescentou Ziegler e, "em apenas cinco anos, será possível produzir bioetanol e biodiesel a partir de restos agrícolas". O perito referia-se às partes celulósicas das plantas, hoje inúteis, em vez de milho, trigo e cana de açúcar. Os cientistas também estão a estudar alternativas, como o de um arbusto, Jatropha Curcas, que cresce em zonas áridas, impróprias para a agricultura.
Um exemplo adiantado por Ziegler é o do milho, um dos alimentos menos eficientes nos biocombustíveis. São precisos 250 quilos de milho para produzir apenas 50 litros de bioetanol. Aquela quantidade permitiria alimentar uma criança durante um ano inteiro.

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