A rosa
Quando ele descobriu que havia rosas de quatro cores e não apenas uma única e exclusiva cor-de-rosa, veio-lhe à cabeça a hipótese de que sua amada poderia não ser apenas sua mas apenas sua obsessão, eventualmente amante de outro tempo, de outro alguém, de uma outra falta ou desejo maior. Ele, que tanto a amava, só queria que ela o amasse. Mas a verdade é que nem isso (lhe) chegava.
Quando ela descobriu que ele era obcecado por si, não apenas por causa da sua própria obsessão pelas rosas vermelhas (que tanto o fazia rir pelo daltonismo da coisa) mas, se calhar, pela cor avermelhada do seu cabelo naquele estranho corte de homenagem a Rod Stewart (ou por qualquer outra coisa ainda mais estranha), veio-lhe à cabeça a hipótese de afinal, naquela noite, não abraçar a noite sozinha, como em todas as outras noites. Ela só queria voar. Mas a verdade é que nem isso (lhe) chegava.
Quando os seus olhos dançaram pelo cabelo dela, pintado e não naturalmente louro, cor-de-vinho ou avermelhado ou lá o que seria, mesmo assim ele estupidamente pensou que a poderia “domesticar”, torná-la “normal”, na acepção que as pessoas “normais” dão à normalidade – ou seja, serem minimamente estandardizadas e iguais a si próprias. Mas…
Quando depois ela dançou, tornou-se deusa, tornou-se flor. Sem cor ou cores, sem tempo, sem amarras. Sem esperas. Tornou-se ela, tornou-se – aí sim - obsessão. Já não havia tempo nem margem para nada, havia que a aceitar como era, com calças feitas de cortinados, com aquela saudável e invejável ignorância da realidade mais básica, até mesmo com aquele total desprendimento de tudo – que tanto o chocava e que, simultaneamente, tanto o atraía.
Quando depois foram para casa dele, deitaram-se, despiram-se, entrelaçaram-se, despediram-se, “até amanhã”. Mas o beijo na face fez-se beijo na boca e o beijo na boca fez-se corpo e o corpo fez-se desejo e os corpos assumiram o desejo de tudo o que tanto queriam e desejavam. Então o chão tornou-se nuvem os cheiros tornaram-se desejo o cor-de-rosa tornou-se cor-de-fogo e trocaram saliva e trocaram suor e trocaram de corpos e viraram-se totalmente do avesso ao trocarem mais e mais outra vez de corpo quando a noite se fez cor da madrugada quando a madrugada se pintou do rosa do desejo, do rosa do abraço, do rosa do beijo, do rosa do Amor. Ou seja, das quatro cores do rosa.
(Indiferente a tudo, a verdade é que ele se apaixonou definitivamente quando descobriu que, quando ela dançava, havia rosas dentro dela – melhor, que ela mesma era uma rosa de quatro, de todas as cores. E, desde esse mágico instante, não mais deixou de a amar. Como a rosa que, efectivamente, ela era.)
Etiquetas: conto/crónica
1 Commenários:
Cor de fogo já não leva hífen, é uma locução. Assim o Acordo com que desacordo. Pois tá claro que a poesia não se pode agrilhoar. Mas assim sempre te ficas a perguntar se cor-de-rosa continua a ter tracinhos ou não. Para concluíres que todos os cor-de-rosas da vida podem ser o que quiserem ser. O teu também! :-)
By APC, at 13 de dezembro de 2011 às 04:33
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