O meu casamento
O meu casamento durou seis meses – o que foi fantástico já que, em apenas seis meses e um dia, tinha passado por três estados civis quase mais depressa do que um norte-americano passa por três estados ponto.
Depois de vinte e poucos anos de solteiro e meio de casado, tinha pela frente – como quem acorda cedo e decide fazer um pormenorizado e generoso plano para esse dia, mesmo que acabe por adormecer a meio dele –, uma eternidade de divorciado, estado que orgulhosamente mantenho.
(Há um amigo meu que defende a teoria de que o “Div.” do Bilhete de Identidade corresponde a um estado “Divino” – claro está que ele é casado!)
Bom, mas tudo acabou porque eu e Ela, seis meses passados, continuávamos a gostar um do outro.
(Parêntesis cultural: Quando perguntaram a Bertrand Russell porque é que se havia apaixonado por sua Mulher, ele respondeu algo como “porque ela era ela, porque eu era eu”)
(Parêntesis menos cultural: Terá mesmo sido Bertrand Russell que o disse?)
Sim, continuávamos a amarmo-nos. Perdidamente. Ora, como toda a gente sabe, ao fim de seis meses pelo menos um tem de detestar o outro - ou, melhor ainda, ignorá-lo - para que o casamento se aguente e siga de vento em popa. Enfim, algo estava errado, era por demais evidente.
Como seria de esperar, acabámos com o casamento. Despedimo-nos no fim de um jantar romântico, beijámo-nos e, no que me toca, parti com a secreta esperança de que Ela um dia me telefonaria dizendo que me odiava – e aí eu voltaria para os seus braços a correr, sendo escorraçado mas (hélas) com um sorriso nos lábios. Ou seja e finalmente, entender-nos-íamos comósoutrosadultos. E, qual cereja no topo do bolo, como se de um anúncio ou de uma novela televisiva se tratasse. Fixe!
Claro está que a realidade nunca dá jeitinho nenhum – logo a começar por ser A realidade. Alguns anos mais tarde, já os meus sonhos de amores eternos
(sendo que a eternidade são dois dias, em proporção à vida serem três)
se haviam desvanecido, cruzei-me com Ela num café. Tentei cumprimentá-la e, muito a custo e pelo meio de uma qualquer frase concebida e formatada para a despedida de pessoas pretensamente civilizadas, dei-lhe um beijo e meio de raspão,
(a última metade foi dada quando ela já lá não estava, por isso não conta)
enquanto ela fugia como se eu fosse um vil violador de passados. Nunca mais a vi e nunca mais a relembrei. Até hoje.
Hoje soube que Ela tem uma filha (Dela e do seu segundo marido e primeiro Zé) a morrer. Palhaçamente pus-me a fazer projecções do tipo “e se e se e se” e se calhar a filha poderia ser minha e não me passa pela cabeça encarar a morte de um filho e nem quero pensar nisso e nem quero que uma morte dessas me roce sequer o pensamento e só espero que tudo corra bem e que o tal de deus ressuscite por instantes - apenas para dar um empurrão mágico na cura –
(infelizmente o sacana de “o tal de deus” não costuma ligar muito às crianças, principalmente às do continente que é o nosso rés-do-chão, se calhar por isso encaradas como as porteiras que havia no tempo da minha avó - com a diferença de que a nossa porteira de 200 quilos comia 10 carcaças de manhã e hoje não há, sequer, 10 carcaças para todas as crianças da Somália)
e se não der e se o cirurgião não prestar e se a doença teimar em viver e se a criança então morrer, que Ela tenha a sorte de, antes, ser atropelada ou esfaqueada ou morta de qualquer forma que seja desde que não assista à morte da filha.
Mas Ela tem um nome, esqueci-me de o dizer. Ana. A filha também o terá, mas eu ignoro qual. Seja como for, para a Ana fica agora e aqui e sob a forma de um texto, a metade do último beijo que eu lhe tentei dar, num já longínquo fim de tarde sombrio que se abateu sobre um café vazio de tudo e mais alguma coisa mas que, naquela hora e por segundos, se iluminou Dela.
Fica esta metade - que nunca será completada com a metade Dela -, apenas como o meu mísero e inútil contributo para a Fortuna que é sempre precisa nestes casos, já que “o tal de deus” se finge morto nas traseiras de uma igreja construída a ouro e ilusões, enquanto cura a ressaca da grandiosa bebedeira que o levou a fazer este mundo de merda.
(deus da merda, não é Ana?)
Depois de vinte e poucos anos de solteiro e meio de casado, tinha pela frente – como quem acorda cedo e decide fazer um pormenorizado e generoso plano para esse dia, mesmo que acabe por adormecer a meio dele –, uma eternidade de divorciado, estado que orgulhosamente mantenho.
(Há um amigo meu que defende a teoria de que o “Div.” do Bilhete de Identidade corresponde a um estado “Divino” – claro está que ele é casado!)
Bom, mas tudo acabou porque eu e Ela, seis meses passados, continuávamos a gostar um do outro.
(Parêntesis cultural: Quando perguntaram a Bertrand Russell porque é que se havia apaixonado por sua Mulher, ele respondeu algo como “porque ela era ela, porque eu era eu”)
(Parêntesis menos cultural: Terá mesmo sido Bertrand Russell que o disse?)
Sim, continuávamos a amarmo-nos. Perdidamente. Ora, como toda a gente sabe, ao fim de seis meses pelo menos um tem de detestar o outro - ou, melhor ainda, ignorá-lo - para que o casamento se aguente e siga de vento em popa. Enfim, algo estava errado, era por demais evidente.
Como seria de esperar, acabámos com o casamento. Despedimo-nos no fim de um jantar romântico, beijámo-nos e, no que me toca, parti com a secreta esperança de que Ela um dia me telefonaria dizendo que me odiava – e aí eu voltaria para os seus braços a correr, sendo escorraçado mas (hélas) com um sorriso nos lábios. Ou seja e finalmente, entender-nos-íamos comósoutrosadultos. E, qual cereja no topo do bolo, como se de um anúncio ou de uma novela televisiva se tratasse. Fixe!
Claro está que a realidade nunca dá jeitinho nenhum – logo a começar por ser A realidade. Alguns anos mais tarde, já os meus sonhos de amores eternos
(sendo que a eternidade são dois dias, em proporção à vida serem três)
se haviam desvanecido, cruzei-me com Ela num café. Tentei cumprimentá-la e, muito a custo e pelo meio de uma qualquer frase concebida e formatada para a despedida de pessoas pretensamente civilizadas, dei-lhe um beijo e meio de raspão,
(a última metade foi dada quando ela já lá não estava, por isso não conta)
enquanto ela fugia como se eu fosse um vil violador de passados. Nunca mais a vi e nunca mais a relembrei. Até hoje.
Hoje soube que Ela tem uma filha (Dela e do seu segundo marido e primeiro Zé) a morrer. Palhaçamente pus-me a fazer projecções do tipo “e se e se e se” e se calhar a filha poderia ser minha e não me passa pela cabeça encarar a morte de um filho e nem quero pensar nisso e nem quero que uma morte dessas me roce sequer o pensamento e só espero que tudo corra bem e que o tal de deus ressuscite por instantes - apenas para dar um empurrão mágico na cura –
(infelizmente o sacana de “o tal de deus” não costuma ligar muito às crianças, principalmente às do continente que é o nosso rés-do-chão, se calhar por isso encaradas como as porteiras que havia no tempo da minha avó - com a diferença de que a nossa porteira de 200 quilos comia 10 carcaças de manhã e hoje não há, sequer, 10 carcaças para todas as crianças da Somália)
e se não der e se o cirurgião não prestar e se a doença teimar em viver e se a criança então morrer, que Ela tenha a sorte de, antes, ser atropelada ou esfaqueada ou morta de qualquer forma que seja desde que não assista à morte da filha.
Mas Ela tem um nome, esqueci-me de o dizer. Ana. A filha também o terá, mas eu ignoro qual. Seja como for, para a Ana fica agora e aqui e sob a forma de um texto, a metade do último beijo que eu lhe tentei dar, num já longínquo fim de tarde sombrio que se abateu sobre um café vazio de tudo e mais alguma coisa mas que, naquela hora e por segundos, se iluminou Dela.
Fica esta metade - que nunca será completada com a metade Dela -, apenas como o meu mísero e inútil contributo para a Fortuna que é sempre precisa nestes casos, já que “o tal de deus” se finge morto nas traseiras de uma igreja construída a ouro e ilusões, enquanto cura a ressaca da grandiosa bebedeira que o levou a fazer este mundo de merda.
(deus da merda, não é Ana?)
Etiquetas: conto/crónica
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