Dia da Mãe
Ainda estou para perceber porque é que, depois de morreres, nunca mais me disseste nada! Não, não é delírio espírita ou algo do género, é mais “lei das compensações” ou “acerto de contas” ou outra coisa qualquer - desde que parecida.
Lembras-te quando eu era criança e tomava conta de ti? Quando te tirava os comprimidos que te enlouqueciam ainda mais do que a falta deles? Quando intercedia por ti aos deuses imaginários
(sim, tinha de ser a esses, que os reais nunca nos ligam nenhuma)
para que as vozes que te perseguiam e assombravam parassem, não mais dessem ordens, não mais inventassem túneis para que te escondesses? E apenas – só e apenas isso - cantassem canções de embalar feitas de melodias que te transportassem, num barco feito de um azul tão frágil que nunca naufragaria, pelas ondas da madrugada, até que chegasses ao Porto do Despertador, onde a realidade irrompia pelas frestas do estore partido do teu quarto disfarçada de gritos de sol matinal? Lembras-te?
Lembra-te que não querias voltar – nunca - para a Gulbenkian e que era eu quem te empurrava para fora da cama e da casa porque sabia que te aguardavam os Cisnes, os Príncipes, os Quebra-Nozes, e todo aquele estranho mundo que te fazia sorrir e rodopiar em torno do que te preenchia o cabeça e as vozes e as vozes e as vozes, eu sabia que te aguardava um mundo que rodopiava em torno de ti, num pas de un sublime e a ti dedicado – sim, era o mundo que rodava enquanto tu, parada, olhavas e deixavas que o tempo girasse, possuída por uma estranha mas feliz agonia.
Reconheço - de facto, não eras tu quem dançava, era o mundo com sol e pernas e nuvens em forma de aplausos e gritos do director, que te recebia; e tu olhavas em redor, não tinhas nada para dizer, deixavas apenas que o tempo, as imagens, os Cisnes, te sugassem a vida, a pouca vida que te restava sem tu saberes que morrias a cada gota de sangue que te escorria das pontas, das sapatilhas feitas pés, dos pés feitos asas, do olhar feito loucura.
Lembro-me que, quando voltavas a casa, era eu quem te esperava, que te fazia um ovo estrelado que eu sabia ser o suborno ideal para que jogássemos xadrez – o melhor momento do dia, estávamos juntos sem estar, ninguém precisava de falar, apenas mover as peças que rodopiavam pelas casas pretas e brancas e que, sem que se percebesse bem porquê, jorravam a cor dos lilases e da acalmia para dentro de nós. O tempo passava
(cheque ao rei)
e nós ali, juntos mas à distância de um tabuleiro, falando mas calados, deixando que o tempo escorresse pelas peças até que já fosse tarde demais para as minhas horas de criança,
(agora sou eu quem come um ovo, acho que me vou deitar)
e eu deitava-me, deitava-me mas só depois de ir, como sempre, voando com os Cisnes despedir-me de ti, um beijo de até amanhã ou até sempre ou até sei lá quando, que não sabemos nunca o que se irá passar – nem subornando os deuses, reais ou imaginários. Pensando bem, não sabemos, sequer, o que já se terá passado…
E depois havia os dias dos Ensaios Gerais
(parte uma perna!)
em que eu ia para a primeira fila com uma lanterna, para te avisar de alguma coisa que corresse mal – uma flashada, tinhas-te enganado; duas “meu deus, catástrofe!”; sim, eu era the expert do ballet clássico, nada me escapava, fruto das digressões em que íamos “a meias” – tu dançavas e eu espreitava, com os meus olhos adolescentes alucinadamente despertos, as mamas de todas as bailarinas, eram pequenas, é certo, mas naquela idade tudo é surpresa e desejo e sabe-se lá que outras palavras iriam surgir para colorir a fome de um corpo. Se bem que as palavras fossem o que menos interessasse na altura…
(Bem sei, reconheço, que quando elas começavam a desconfiar de tanta - chamemos-lhe - “fixação ocular”, tu me salvavas com aquela máxima de “é só uma criança, o que é que estás para aí a dizer?”)
Olha, estás a ver como eu cuidei de ti? Mesmo quando voaste da janela do último andar eu pedi aos pássaros que te segurassem, eles é que não ouviram, não tive culpa! Não tive, Mãe, a sério que não tive – e eu sei que, agora que morreste e que aí (seja onde for) têm uma espécie de replays para verificarmos foras de jogo e de tempo e opiniões, já percebeste que eu fiz sempre – mas sempre - tudo para te proteger.
Então acertemos contas – quando eu era criança cuidei de ti, agora que estou velho e cansado e farto e com vontade de ir ter contigo, ao teu regaço e consolo que sempre me negaste, é a tua vez de cuidar e de me dizeres que os meus filhos precisam de mim como tu também precisaste, e que tenho de me aguentar até que os Cisnes me levem através dos azuis da madrugada. Sabes porquê? Porque, agora, é a tua vez de mentir, de me dizeres que alguma coisa vale a pena
(sim, ambos sabemos que não há nada que valha a pena, mas que se lixe!)
nem que seja a nossa indomável vontade de não nos vermos nunca mais. Porque dói.
Demais.
Lembras-te quando eu era criança e tomava conta de ti? Quando te tirava os comprimidos que te enlouqueciam ainda mais do que a falta deles? Quando intercedia por ti aos deuses imaginários
(sim, tinha de ser a esses, que os reais nunca nos ligam nenhuma)
para que as vozes que te perseguiam e assombravam parassem, não mais dessem ordens, não mais inventassem túneis para que te escondesses? E apenas – só e apenas isso - cantassem canções de embalar feitas de melodias que te transportassem, num barco feito de um azul tão frágil que nunca naufragaria, pelas ondas da madrugada, até que chegasses ao Porto do Despertador, onde a realidade irrompia pelas frestas do estore partido do teu quarto disfarçada de gritos de sol matinal? Lembras-te?
Lembra-te que não querias voltar – nunca - para a Gulbenkian e que era eu quem te empurrava para fora da cama e da casa porque sabia que te aguardavam os Cisnes, os Príncipes, os Quebra-Nozes, e todo aquele estranho mundo que te fazia sorrir e rodopiar em torno do que te preenchia o cabeça e as vozes e as vozes e as vozes, eu sabia que te aguardava um mundo que rodopiava em torno de ti, num pas de un sublime e a ti dedicado – sim, era o mundo que rodava enquanto tu, parada, olhavas e deixavas que o tempo girasse, possuída por uma estranha mas feliz agonia.
Reconheço - de facto, não eras tu quem dançava, era o mundo com sol e pernas e nuvens em forma de aplausos e gritos do director, que te recebia; e tu olhavas em redor, não tinhas nada para dizer, deixavas apenas que o tempo, as imagens, os Cisnes, te sugassem a vida, a pouca vida que te restava sem tu saberes que morrias a cada gota de sangue que te escorria das pontas, das sapatilhas feitas pés, dos pés feitos asas, do olhar feito loucura.
Lembro-me que, quando voltavas a casa, era eu quem te esperava, que te fazia um ovo estrelado que eu sabia ser o suborno ideal para que jogássemos xadrez – o melhor momento do dia, estávamos juntos sem estar, ninguém precisava de falar, apenas mover as peças que rodopiavam pelas casas pretas e brancas e que, sem que se percebesse bem porquê, jorravam a cor dos lilases e da acalmia para dentro de nós. O tempo passava
(cheque ao rei)
e nós ali, juntos mas à distância de um tabuleiro, falando mas calados, deixando que o tempo escorresse pelas peças até que já fosse tarde demais para as minhas horas de criança,
(agora sou eu quem come um ovo, acho que me vou deitar)
e eu deitava-me, deitava-me mas só depois de ir, como sempre, voando com os Cisnes despedir-me de ti, um beijo de até amanhã ou até sempre ou até sei lá quando, que não sabemos nunca o que se irá passar – nem subornando os deuses, reais ou imaginários. Pensando bem, não sabemos, sequer, o que já se terá passado…
E depois havia os dias dos Ensaios Gerais
(parte uma perna!)
em que eu ia para a primeira fila com uma lanterna, para te avisar de alguma coisa que corresse mal – uma flashada, tinhas-te enganado; duas “meu deus, catástrofe!”; sim, eu era the expert do ballet clássico, nada me escapava, fruto das digressões em que íamos “a meias” – tu dançavas e eu espreitava, com os meus olhos adolescentes alucinadamente despertos, as mamas de todas as bailarinas, eram pequenas, é certo, mas naquela idade tudo é surpresa e desejo e sabe-se lá que outras palavras iriam surgir para colorir a fome de um corpo. Se bem que as palavras fossem o que menos interessasse na altura…
(Bem sei, reconheço, que quando elas começavam a desconfiar de tanta - chamemos-lhe - “fixação ocular”, tu me salvavas com aquela máxima de “é só uma criança, o que é que estás para aí a dizer?”)
Olha, estás a ver como eu cuidei de ti? Mesmo quando voaste da janela do último andar eu pedi aos pássaros que te segurassem, eles é que não ouviram, não tive culpa! Não tive, Mãe, a sério que não tive – e eu sei que, agora que morreste e que aí (seja onde for) têm uma espécie de replays para verificarmos foras de jogo e de tempo e opiniões, já percebeste que eu fiz sempre – mas sempre - tudo para te proteger.
Então acertemos contas – quando eu era criança cuidei de ti, agora que estou velho e cansado e farto e com vontade de ir ter contigo, ao teu regaço e consolo que sempre me negaste, é a tua vez de cuidar e de me dizeres que os meus filhos precisam de mim como tu também precisaste, e que tenho de me aguentar até que os Cisnes me levem através dos azuis da madrugada. Sabes porquê? Porque, agora, é a tua vez de mentir, de me dizeres que alguma coisa vale a pena
(sim, ambos sabemos que não há nada que valha a pena, mas que se lixe!)
nem que seja a nossa indomável vontade de não nos vermos nunca mais. Porque dói.
Demais.
Etiquetas: conto/crónica
2 Commenários:
Estava eu no meu mundo de canções de embalar onde a realidade nao irrompe por frestas algumas...e a curiosidade pregou-me uma partida:). Fiquei baralhada...entre o simples apreciar e mais curiosidade ainda! Beijo da dondoca:)
By Anónimo, at 3 de maio de 2011 às 10:18
huau!
(apreciei e fiquei sem pio)
By rita, at 3 de maio de 2011 às 23:57
Enviar um comentário
<< Home