CUOTIDIANO

quinta-feira, maio 05, 2011

Helga


Chegou ao barco. Olhou muito lentamente em volta, de olhos semi-cerrados. Inspirou a maresia. Ignorou o tempo, feito de segundos e pensamentos que lhe zumbiam a cabeça. Afinal estava ali, apenas ali, e a cheirar a maresia. Apenas isso. Mais nada. Eram segundos únicos, preciosos, estava só, não tinha que falar com ninguém, muito menos discutir quem é que se levantaria para saber porque é que a criança chorava, resolve lá isso, que chatice, e vai lá tu, e não vou, e estou a ir, chiça, era apenas aquele momento e era seu, o mundo que parasse e que calasse, era o seu momento, não queria lembrar nada, nem que fosse

(o seu bilhete, se faz favor)

Está bem, já compramos um sumo, vá lá, não chores, e o barco lá andava sobre as míseras ondas do estuário que até um lago suíço tem mais personalidade ondulante, que trampa de vida até o rio é uma chacha sem emoção, mas cheirava a maresia ao ponto de parecer real, e o som da sirene e o meio nevoeiro que se ia espalhando pelos olhos e pelas roupas, e tentava que o momento, o tempo fosse de novo seu, mas a criança chorava

(Lembrava-se que, quando pequena, sua Mãe a levava ao Jardim Zoológico mostrando-lhe os animais - mas ela só queria sair dali porque sabia, vá lá saber-se como, que aquele sítio é apenas para adultos e que eles só levam as crianças como desculpas para não parecer mal, que merda, tirem-me daqui)

Vá lá, não chores, estamos quase a chegar, e saiu do barco carregando a criança e dores e sono e despejou-a na creche e correu para o trabalho e sorriu para o computador, para as 8 horas que ainda faltavam para voltar para o barco e para a maresia e para a criança - que todos eles a esperavam – ah, é verdade, e também para o “companheiro” que jazia no sofá em overdose de futebol e anos juntos e de namoro e tirem-me daqui era a cidade mais próxima e não quero esta vida e dêem-na a alguém e agora será que serei o que estou a ser com dúvidas e vozes e coisas estranhas revolvendo o que vou pensando?

(Mas afinal como é que cheguei aqui?)

Amanhã é hoje e ontem e é igual, o que é que eu fiz para merecer isto e entra a sogra em casa com um bolo e sim estamos todos muito felizes e sai a sogra com o prato do bolo e o bolo arrasta-se pelos intestinos de todos como a porra da minha vida se arrasta pelos intestinos deste sítio e tempo mal-cheirosos chiça que merda

(Tenho de adormecer, amanhã acordo cedo)

Bom, boa noite, todos para a cama, rápido que já é amanhã, e beijinhos, e boa noite, e desculpa não me apetece, não é nada sempre assim, agora é que estou morta, então está bem mas despacha-te, sim, para mim também foi óptimo, espera aí que a criança está a chorar, volto já, até amanhã, que é quase dia, quase barco, quase maresia, quase vida quase sem tempo. Quase a minha vida. A que não tenho.

(Eu só queria cheirar a maresia. Por uns míseros segundos. Sozinha. Será pedir muito?!)

Já vou!

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1 Commenários:

  • Este remeteu-me as "horas":), mais especificamente a Julianne Moore e o seu "atrofio" numa vida que não lhe pertençe.Mais nada...não me lembra mais nada nem ninguem:)))).
    Estou a ir...cheirar a maresia!

    By Anonymous Anónimo, at 7 de maio de 2011 às 11:17  

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