Jardim das estrelas
Quando, à saída do Liceu, ele ia com os colegas (versão embrionária mas não menos verdadeira de amigos) para o Jardim da Estrela jogar futebol com uma minúscula bola de plástico comprada com o dinheiro de vários lanches não comidos, num campo limitado pelos bancos vaidosamente eleitos ao estatuto de baliza por expulsão dos velhos para o jogo da sueca, os pavões, essa estranha fusão de perus desalmados com top-models em desgraça, saudavam-nos sempre com estridentes gritos
Pinu, pinu!
no que eles acreditavam ser uma fantástica coincidência com a recém-ouvida história de Pepino, o Breve, o rei tão perdido mas também tão recém-descoberto,
(havia uma tal de Clotilde que…)
acabadinho de sair dos compêndios e da voz (tão desesperada por atenção, coitada) da professora de História que, segundo ela e o livro oficial da verdade por apenas 20$ apenas, havia sido um rei tão pequeno tão pequeno ao ponto de nunca ter conseguido ser nada mais que uma mera interjeição de pavão. Por isso ou por nada que ver com isso, iniciavam o jogo numa espécie de ritual quase religioso, gritando em uníssono com os pavões
Pinu, pinu!
Começava o jogo. Cinco minutos, golos, faltas... Adiante.
Como era já quase tradição, enquanto fintavam o tempo e a chatice dos TPC’s, passava por eles uma mulher de corpo esfarrapado e de olhar para além da lua, empurrando um carrinho de compras atestado de um nada feito de roupas velhas, trapos, sacos, algo que, para a mentalidade deles, nada mais seria senão um potencial objecto de gozo – um gozo já testado vezes sem conta. Talvez por isso, um gozo maior ainda.
- Ó mãe, dá pão!
(Gritavam)
- Ó mãe, dá pão!
- Ó mãe, dá pão!
- Ó mãe, dá pão!
(Não paravam)
- Ó mãe, dá pão!
Não paravam. Mesmo.
Então ela gelava e mudava de pele e de olhar, começava a apedrejá-los, gritava, uivava estridentes delírios sem sentido - mas mais sentidos que o que quer que fosse -, tão cruamente verdadeiros que os pavões calavam, que a bola - ainda mais minúscula do que realmente já era -, se escondia por debaixo dos bancos, que o carrinho chorava ao ponto do jogo acabar; mas eles, cruéis como qualquer criança que se preze, riam cada vez mais da aventura quase planeada, da morte tão verdadeira quanto encenada dos filhos que ela teria tido e que, de fome, haviam morrido sem nunca ninguém, sequer, ter percebido se realmente teriam vivido - a não ser ela, por quem os filhos, acorrentados nas entranhas dos pavões, gritavam; por quem, aprisionados nos pescoços dos cisnes, todos os dias desejavam afogar-se à falta de um minuto de afecto dela que fosse – mas a verdade é que ela, por sua vez, também navegava as lágrimas de mil olhares de ódio e desprezo e gritos e vozes e gozos que, lenta mas certeiramente, a iam corroendo e matando... Infelizmente, devagar demais.
O Sol punha-se no jardim. Os cisnes recolhiam, conformados, às casotas de madeira por entre os canaviais. Os pavões bebiam a água do lago para refrescar os gritos. Os bancos descansavam da correria atrás da bola. Os velhos abandonavam as suecas que, de tristes, iam para o Bairro Alto jogar às cartas com o Destino. Os putos regressavam a casa, a toques de cajado dos pais. Aproveitando a ausência do Sol, a noite pintava todo o jardim dos azuis e ondulantes reflexos lunares do lago. Voltava a calma, ao sabor refrescante da brisa. Amanhã? Amanhã ainda era algo muito, mas muito distante - que se lixe o amanhã. Em suma, nem o silêncio se ouvia.
(Na verdade, os filhos que ela nunca havia tido - mas apenas e muito e muito desesperadamente desejado -, limitavam-se a jogar à bola num jardim plantado na estrela mais distante. Entretinham-se, enquanto a esperavam.)
Pinu, pinu!
no que eles acreditavam ser uma fantástica coincidência com a recém-ouvida história de Pepino, o Breve, o rei tão perdido mas também tão recém-descoberto,
(havia uma tal de Clotilde que…)
acabadinho de sair dos compêndios e da voz (tão desesperada por atenção, coitada) da professora de História que, segundo ela e o livro oficial da verdade por apenas 20$ apenas, havia sido um rei tão pequeno tão pequeno ao ponto de nunca ter conseguido ser nada mais que uma mera interjeição de pavão. Por isso ou por nada que ver com isso, iniciavam o jogo numa espécie de ritual quase religioso, gritando em uníssono com os pavões
Pinu, pinu!
Começava o jogo. Cinco minutos, golos, faltas... Adiante.
Como era já quase tradição, enquanto fintavam o tempo e a chatice dos TPC’s, passava por eles uma mulher de corpo esfarrapado e de olhar para além da lua, empurrando um carrinho de compras atestado de um nada feito de roupas velhas, trapos, sacos, algo que, para a mentalidade deles, nada mais seria senão um potencial objecto de gozo – um gozo já testado vezes sem conta. Talvez por isso, um gozo maior ainda.
- Ó mãe, dá pão!
(Gritavam)
- Ó mãe, dá pão!
- Ó mãe, dá pão!
- Ó mãe, dá pão!
(Não paravam)
- Ó mãe, dá pão!
Não paravam. Mesmo.
Então ela gelava e mudava de pele e de olhar, começava a apedrejá-los, gritava, uivava estridentes delírios sem sentido - mas mais sentidos que o que quer que fosse -, tão cruamente verdadeiros que os pavões calavam, que a bola - ainda mais minúscula do que realmente já era -, se escondia por debaixo dos bancos, que o carrinho chorava ao ponto do jogo acabar; mas eles, cruéis como qualquer criança que se preze, riam cada vez mais da aventura quase planeada, da morte tão verdadeira quanto encenada dos filhos que ela teria tido e que, de fome, haviam morrido sem nunca ninguém, sequer, ter percebido se realmente teriam vivido - a não ser ela, por quem os filhos, acorrentados nas entranhas dos pavões, gritavam; por quem, aprisionados nos pescoços dos cisnes, todos os dias desejavam afogar-se à falta de um minuto de afecto dela que fosse – mas a verdade é que ela, por sua vez, também navegava as lágrimas de mil olhares de ódio e desprezo e gritos e vozes e gozos que, lenta mas certeiramente, a iam corroendo e matando... Infelizmente, devagar demais.
O Sol punha-se no jardim. Os cisnes recolhiam, conformados, às casotas de madeira por entre os canaviais. Os pavões bebiam a água do lago para refrescar os gritos. Os bancos descansavam da correria atrás da bola. Os velhos abandonavam as suecas que, de tristes, iam para o Bairro Alto jogar às cartas com o Destino. Os putos regressavam a casa, a toques de cajado dos pais. Aproveitando a ausência do Sol, a noite pintava todo o jardim dos azuis e ondulantes reflexos lunares do lago. Voltava a calma, ao sabor refrescante da brisa. Amanhã? Amanhã ainda era algo muito, mas muito distante - que se lixe o amanhã. Em suma, nem o silêncio se ouvia.
(Na verdade, os filhos que ela nunca havia tido - mas apenas e muito e muito desesperadamente desejado -, limitavam-se a jogar à bola num jardim plantado na estrela mais distante. Entretinham-se, enquanto a esperavam.)
Etiquetas: conto/crónica
1 Commenários:
Lindo,este texto.Senti saudades desse caminho, dos colegas do Liceu e das travessias todos os dias, do Jardim. E das conversas, dos aromas, da doçura dos fins de tarde. Das sombras das árvores e do piar dos pavões. Lembro-me do misto de emoções dos encontros inesperados com a mãe -dá-pão. Pairei, voei até uma parte do que foi um pouco do meu quotidiano. Obrigada!
Joana Vidoeira
By Joana Vidoeira, at 4 de outubro de 2011 às 18:27
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