CUOTIDIANO

quarta-feira, abril 04, 2012

Miss Lua


Era Miss Lua. Apenas porque sim ou só porque dançava só nos limites daquela pista de dança circular, dançando sempre, sempre voltada para o centro. Rodava, rodava, qual Lua à volta da Terra, qual alucinação em torno da música, qual loucura mesmo sem psicólogo clínico que lha decretasse. Pior, sem ninguém que a esperasse. No fim da noite. Ou no fim de nada.

Sentava-se a um canto, bebia o seu copo, o seu copo, o seu copo, o seu corpo e quando já estava pronta para orbitar o pequeno mundo daquela discoteca dos confins de um qualquer e estranho submundo da noite, lá ia ela para a pista – melhor, para o seu limite -, rodando, rodando, mostrando que havia não mundos para além daquele que todos julgávamos e julgamos conhecer, mesmo que nem sequer conheçamos minimamente aquele que nos povoa e polui as entranhas.

Rodava, abria os braços, fechava os olhos, rodava mais ainda, intuía o centro - qual experiente matemático do nada -, rodava, rodava, quem quer que lhe dirigisse a palavra era ignorado, ela rodava para sobreviver, rodava a sobrevivência, se parasse morreria, qual tubarão sem mar mas com discoteca e luzes e sons e gritos e fumo e êxitos da rádio a entranharem-se na roupa, até já a roupa gritava, rodava, rodava, já os olhos não viam, rodava, rodava, já o tempo parava, rodava, rodava, já a noite dançava, rodava, rodava, e depois o seu copo, o seu copo, o seu copo, o seu corpo, tudo começava a fazer mais efeito, a fazer mais, a fazer vontades e realidades próprias e depois é melhor sentar-me. Pensava.

Depois ainda

Sentava-se a um canto, bebia o seu copo. Acalmava. Mas a seguir bebia o seu copo, depois seu copo, o seu corpo e quando já estava calmamente disposta a morrer alguém lhe perguntava se ela dançava ok mas mostra aí as notas ou o cartão e ele exibia a gravata de seda e os botões de punho e as fantasias em que só se acredita após o terceiro copo ou quando nos pagam para acreditar mas mesmo assim ela dizia que não, a única prostituta do Martim Moniz que nunca tinha ido para a cama com ninguém, nem mesmo com o tipo do circo por quem se apaixonara, mas que rodopiava dançando - o que lhe era inaceitável.

Dizem que era virgem, a única prostituta virgem depois da definição, dizem, até, que lhe faltava um braço - mas nunca se chegou a saber, quando tentaram descobrir ela já orbitava a Terra mas em sentido literal, quase que chocava com um satélite meteorológico russo (consta que filho ilegítimo da Soyuz), até que o pequeno mundo daquela discoteca dos confins de um qualquer submundo também levantou voo para além das estrelas e rodopiou à volta dela, desesperado de saudades, olhando só para o centro… que era ela, a partir daquele instante, apenas e só ela.

Foi então que a Terra passou a ter duas luas. Enquanto uma se limitava a cumprir o seu papel obediente à Física e, simplesmente, orbitava, a outra dançava, dançava, dançava, dançava, à descoberta do submundo não assumido que dentro de nós existe, explorando a pista do estranho som das marés que nos adormecem e, simultaneamente, acordam.

Na verdade foi ali que ela realmente nasceu. Banhada pelo outro luar.

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