CUOTIDIANO

terça-feira, junho 20, 2006

O prestígio das dívidas


Tinha acabado de vir das Finanças a pé, pois até com o carro me haviam ficado, à conta do IRS em atraso. De volta ao meu escritório, o porteiro, pela primeira vez em dez anos, voltou-se para mim e cumprimentou-me: “boa tarde, sr. engenheiro”. – Até achei giro, o único problema é que eu só tenho a 4ª classe; mas que se lixe, gostei...

No dia seguinte voltei às Finanças, porque ainda faltava tratar do IVA; então aí, já de lá saí partilhando as roupas com o meu advogado, o que me fez constipar - Estava aquele friozinho de fim de tarde e ele só queria, a toda a força, emprestar-me parte da sua lingerie de rendas; mas como para mim, que sou mais macho de saiote plissado, aquelas roupas eram uma mariquice, optei por lhe pedir, apenas, uma meia e uma gravata . Adiante. Deixou-me à porta de casa, depois de eu lhe ter devolvido as roupas emprestadas e entregue doze verrugas como forma de pagamento – É que nada mais me sobrava...

Antes de voltar para casa propriamente dita, resolvi tomar um café, que pagaria com um sinal de família. Entrei na pastelaria que sempre tenho frequentado e, para grande espanto meu, o empregado mal encarado dos últimos vinte anos voltou-se para mim e perguntou, com ar servil: “sr. professor dr., bem-vindo seja, o que vai desejar?”. Estranho, muito estranho, tanto mais que eu estava completamente nu.

Quando, finalmente, tentei voltar para casa, informaram-me que o prédio havia sido removido para o 12º Bairro Fiscal, como forma de pagamento de juros - Os restantes inquilinos ficaram felicíssimos, pois há séculos que não olhavam as estrelas. Resignado, deitei-me no relvado em frente e um vizinho (ou, mais rigorosamente, ex-vizinho), que fazia o seu passeio nocturno, desejou-me “muito boa noite, sr. comendador”.

Enrolado no “Financial Times” da véspera, tentei adormecer. Enquanto o fazia, meditava: “Isto das dívidas é fantástico, aumenta mesmo o nível social de uma pessoa, é impressionante. Já me tinham falado nisto, mas nunca havia acreditado!”

Entretanto, um cão que passava, que nunca tinha lido Marx, nem Rebelo Light Pinto, nunca havia dissertado sobre a existência (limitando-se, simplesmente, a existir) e que nem, tampouco, sabia beber por um frappé, olhou-me altivamente e mijou-me em cima.

0 Commenários:

Enviar um comentário

<< Home