Era a nossa casa
Era a nossa casa. Sim, disse “nossa” de propósito, apesar de tu nunca lá teres morado, onde só foste uma vez, por breves minutos. A mesma que eu quis. Melhor - que eu para ti fiz, passo a pedra, pedra a passo, verde a ver-te por entre as árvores, por entre mim. Essencialmente “longe de tudo menos de nós”, como me havias dito num dia que foi noite, numa noite que foi nossa, adormecida pela ponta dos meus dedos e por teus olhares camuflados.
Sim, foi a casa que eu fiz, de respiração presa à espera dos pássaros que te chamavam cantando, à espera do teu olhar que julguei meu, das fontes, daquele teu sorriso inexplicável que te rasgava os olhos enquanto suspendia do tempo todos os sons, todos os temporais, todos os medos, todas as esperas – sim, era então o tempo em que o tempo era real e completamente teu.
Depois escolhi cores, mobílias. Depois escolhi toalhas e talheres e pratos e mais pratos e copos. Depois, à última da hora, lembrei-te mais um pouco e comprei também aquele quadro que namoravas há muito. Depois, apressadamente porque estavas quase a chegar, espalhei pedaços da nossa vida pela casa, como pétalas disfarçadas de bibelôs. E no último minuto, ainda consegui arranjar tempo para escolher uma camisa azul que tu me havias dado (hoje está catalogada de foleira, apodrecendo no meu armário).
Então chegaste. Olhaste à volta, provavelmente não gostaste mas, educadamente, nada disseste – no entanto eu ouvi. Esperei um beijo, tocou teu telefone – tinhas de ir, qualquer emergência que se calhar não o era, mas que achaste importante atender. Nada perguntei, não mais lá voltaste. Alguns meses depois, eu próprio também me vim embora - faltavas lá, faltavas-me no ar, nos cheiros, faltavas-me, apenas.
Ainda hoje não sei porque tudo aconteceu assim e também não procuro saber. Mas sei que, estranhamente e desde então, comecei a catalogar tudo; ao que aconteceu, cataloguei de “a Vida acontece”; a ti, que todas as noites relembro, que todas as noites me dóis, cataloguei como “grande amor da minha vida” - imagino que me catalogaste como “foleiro” e apodreço no teu armário, longe da memória, dos afectos , dos lugares.
Entretanto, as árvores cresceram e tomaram a casa, cada vez mais apodrecida, como sua - seus ramos abraçaram-na, suas folhas mobilaram-na e, com a ajuda dos Invernos, decoraram-na.
Hoje carrego em mim árvores desesperadas carregadas de ramos desesperados à procura de ti, como uma casa para abraçar. No entanto, e passadas as palavras, sei que a verdade é que, apenas e só, cá vou apodrecendo num armário de ninguém.
Sim, foi a casa que eu fiz, de respiração presa à espera dos pássaros que te chamavam cantando, à espera do teu olhar que julguei meu, das fontes, daquele teu sorriso inexplicável que te rasgava os olhos enquanto suspendia do tempo todos os sons, todos os temporais, todos os medos, todas as esperas – sim, era então o tempo em que o tempo era real e completamente teu.
Depois escolhi cores, mobílias. Depois escolhi toalhas e talheres e pratos e mais pratos e copos. Depois, à última da hora, lembrei-te mais um pouco e comprei também aquele quadro que namoravas há muito. Depois, apressadamente porque estavas quase a chegar, espalhei pedaços da nossa vida pela casa, como pétalas disfarçadas de bibelôs. E no último minuto, ainda consegui arranjar tempo para escolher uma camisa azul que tu me havias dado (hoje está catalogada de foleira, apodrecendo no meu armário).
Então chegaste. Olhaste à volta, provavelmente não gostaste mas, educadamente, nada disseste – no entanto eu ouvi. Esperei um beijo, tocou teu telefone – tinhas de ir, qualquer emergência que se calhar não o era, mas que achaste importante atender. Nada perguntei, não mais lá voltaste. Alguns meses depois, eu próprio também me vim embora - faltavas lá, faltavas-me no ar, nos cheiros, faltavas-me, apenas.
Ainda hoje não sei porque tudo aconteceu assim e também não procuro saber. Mas sei que, estranhamente e desde então, comecei a catalogar tudo; ao que aconteceu, cataloguei de “a Vida acontece”; a ti, que todas as noites relembro, que todas as noites me dóis, cataloguei como “grande amor da minha vida” - imagino que me catalogaste como “foleiro” e apodreço no teu armário, longe da memória, dos afectos , dos lugares.
Entretanto, as árvores cresceram e tomaram a casa, cada vez mais apodrecida, como sua - seus ramos abraçaram-na, suas folhas mobilaram-na e, com a ajuda dos Invernos, decoraram-na.
Hoje carrego em mim árvores desesperadas carregadas de ramos desesperados à procura de ti, como uma casa para abraçar. No entanto, e passadas as palavras, sei que a verdade é que, apenas e só, cá vou apodrecendo num armário de ninguém.
PS – Fotografia roubada a “Camuflagens”, que a “adquiriu” em “Fotoescrita”. Agradeço virtualmente a ambos os “blogs” e realmente às Pessoas por detrás dos mesmos.
7 Commenários:
Sei que o que vou dizer vai soar irreal, principalmente quando ainda se está a sentir dor, mas devemos construir, edificar e sedimentar, com fortes vigas de sustentação, a nossa morada. Antes de tudo, nós devemos estar bem plantados e firmes para que não desabemos quando diante da enorme dor da rejeição.
Bla, bla bla puro. A verdade é que nunca estamos preparados para a rejeição nem para morte.
Fique bem.
Beijo
By Leticia Gabian, at 5 de outubro de 2006 às 12:45
Durante as filmagens do "Psicho", o grande realizador Alfred Hitchkoc aproximou-se de Antony Perkins, que aparentava estar, devido à "proximidade" com a sua personagem, meio amedrontado (provavelmente na cena do esfaqueamento do duche) e disse-lhe o seguinte:
"It's just a movie, Tony!"
Aqui é o mesmo - é apenas ficção, escrita na primeira pessoa, que não sou eu mesmo mas, apenas, o "sujeito enunciado". No entanto, e como é evidente, tudo o que escrevemos tem sempre algo do nós, de auto-biográfico...
Beijo também
By cuotidiano, at 5 de outubro de 2006 às 15:18
E tem sempre algo de louco! ;-)
Está muito bonito! :-)
O que uma porta não faz!...
By APC, at 5 de outubro de 2006 às 21:17
comovente este texto
By jo, at 6 de outubro de 2006 às 14:03
Pois que este texto fica lá muito bem. Boa ideia esta partilha de uma fotografia que já de si foi partilhada comigo pelo Diafragma, como habitualmente no Fotoescrita. (www.instantaneos.blogspot.com).
M
By M., at 6 de outubro de 2006 às 18:03
http://xa-das-5.blogspot.com/
By Anónimo, at 7 de outubro de 2006 às 01:17
Expectativas, sempre as expectativas do que gostávamos ou do que queremos que a nossa vida seja. Sempre a pensar no que fazemos bem ou fazemos mal para impressionar os outros. E depois, no fim, ficamos com a tarefa ingrata da "catalogação". Visto assim, parece que estamos a viver a nossa vida ao contrário, mais na base do album de fotografias de acontecimentos que nunca chegaram a ocorrer, do que em saborear todos os momentos de pequena felicidade que vamos encontrando num beijo ou num carícia da pessoa que amamos.
Abraço.
By Nuno Guronsan, at 8 de outubro de 2006 às 17:23
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