CUOTIDIANO

quinta-feira, novembro 23, 2006

Tirem-me esta vaca de minha casa!

Acordei. Pior. Acordei estremunhado. Pior ainda. Fui acordado. Pior pior ainda. Fui acordado por um qualquer silvar irritante. Quase a rebentar de instintos assassinos e após chocar três vezes com o armário, lá consegui chegar à sala de onde, pelo menos aparentemente, o ruído provinha – e não é que lá estava uma vaca, descrevendo órbitas elípticas em volta do candelabro sec. XVII banhado a ouro, ruminando umas estranhas ervas com um ar deliciado e deixando escorrer, por entre sorrisos, uma espessa saliva esverdeada? Que chatice! Logo havia, ontem à noite, a porcaria da janela de ter ficado aberta!

(Momento de dúvida e hesitação: Mas... não seria uma mosca? Não, não pode ser, as moscas não ruminam, que estupidez a minha!)

(Bom, de volta à realidade). Tentei enxotá-la... nada. Tentei suborná-la com um pato de loiça extremamente giro... nada, nenhuma reacção outra vez. E agora, com aquela vaca ali, como é que eu poderia ter uma vida normal? Bom, na verdade também já não tinha...

Não interessa, adiante. Passei o dia a tentar pô-la a andar dali para fora mas, depois de muitas tentativas e de muito ruminar mental (acho que já começava a ter ataques de mimetismo...) tentando descobrir uma saída para esta crise - e para ela, principalmente -, pensei para comigo: “Isto só vai lá com uma solução radical!”

Assim fiz. Aproximei-me dela, fiz o meu olhar sério nº 49 e disse com firmeza:

- Sobreiro!

Abruptamente, a órbita da vaca começou a fazer algumas oscilações bruscas que, pouco depois, pararam, estabilizando o vôo; no entanto, a órbita parecia agora menos elíptica e mais circular. Pareceu-me ouvi-la dizer “sendo uma circunferência um caso particular de uma elipse, por definição também ela é uma elipse, minha grande besta!”; mas preferi fazer-me de surdo – afinal quem é que era aquela vaca para me dar lições do que quer que fosse?

- Sobreiro! – repeti convicto.

A vaca abanou novamente mas, tentando resistir, passou a uma estranhíssima e defensiva órbita rectangular o que é, manifestamente, uma impossibilidade física. Então mas... seria ela também movida a motores de propulsão de improbabilidade infinita? Teria ela mecanismos de defesa auto-imunes-de-geo-biogás-mega-macro-K27-ou-seja-poderosos-à-brava? Seria já um upgrade de uma vaca topo de gama? Será que Deus põe um nariz vermelho para brincar ao Carnaval? Já eram dúvidas a mais para o meu modesto cérebro. Mas ignorando deliberadamente os riscos que corria, continuei a investida sem hesitação, pensando “que se lixe, isto assim é que não pode ficar, tanto mais que ela usa um relógio vermelho com ponteiros azuis o que, só por si, já denota uma grande falta de gosto”.

- Sobreiro! – insisti e insisti e insisti e insisti...

Abreviando. Depois de mais cerca de quinze impiedosos ataques com a palavra “sobreiro”, a vaca não conseguiu resistir. Com estrondo caiu ao chão, chorando e implorando:

- Pare, pare, não aguento mais, eu vou-me embora para a semana!

- Sobreiro!

- Está bem, amanhã.

- Sobreiro!

De facto, não aguentou mais. Ainda acabava eu de pronunciar a palavra assassina, já ela voava dali para fora, partindo a janela que entretanto, e com as correntes de ar geradas pelas várias órbitas, por azar se tinha fechado.


Por uma estranha e infeliz coincidência, mal isto acontecia ouvi o barulho de uma chave rodando na fechadura - era a dona da casa. “Estou tramado”, pensei. Rapidamente me escondi por detrás de uma lâmpada do candelabro e esperei que anoitecesse para a morder – é que toda esta crise fez-me cá uma fome!...

11 Commenários:

  • Olha, venho cá para te contar uma coisa estranha:
    Acreditas que eu sonhei que vinha ao teu blog ver se tinhas novidades - pois há muito não sabia da tua pessoa - e de repente dava com um post sobre uma vaca a voar em torno do teu candeeiro de tecto? Bom, só te digo... Às tantas fartavas-te de dizer um nome de uma árvores qualquer, e à conta disso a bicha lá se pirava pela janela, partindo-lhe os vidros. E depois - esta é forte, mas por favor não me leves a mal, foi só um sonho! - tu escondias-te atrás de uma lâmpada para que não te vissem e mais aos estragos feitos.
    Como calcularás, pensei muito se te deveria confessar isto, e espero não ter colocado em risco o nosso convívio de mais de 50 anos. Sabes... Eu não sou completamente louca; mas acredito que pareça nalguns casos, claro. Enfim, tu perceberás! :-*

    By Blogger APC, at 24 de novembro de 2006 às 02:35  

  • Fiquei com muitas dúvidas existenciais depois deste "post". Quais os poderes da palavra Sobreiro"? Será eficaz com outros seres-vivos? Poderei usá-la em outras situações?
    Talvez vá experimentar um deste dias. Já estou a imaginar-me no meu meio profissional e para tentar pressionar um acordo...

    By Blogger redonda, at 24 de novembro de 2006 às 17:06  

  • Parece-me que és uma muriçoca ou um morcego. Rogo-te que me ensines a palavra assassina capaz de espantar pra Casa Branca esses tais "bichinhos" de asas, que por aqui há em abundância. Podes me mandar por e-mail a informação e o respectivo valor da tua consultoria.

    Como sempre, me diverti a morrer! Um beijo pra ti.

    By Blogger Leticia Gabian, at 24 de novembro de 2006 às 17:36  

  • Caro Senhor

    Para quem quiser ler este texto com maior desenvoltura e, obviamente, maior grandeza literária, é favor consultar a colectânea de crónicas de Pedro Mexia «Primeira Pessoa», onde está lá o original. O plágio, meu caro, só retira dignidade a quem o utiliza. Daí, o demérito absoluto daquilo que escreveu, coisa que, acho, devia evitar.

    Alípio Dias de Sá

    By Anonymous Anónimo, at 25 de novembro de 2006 às 09:59  

  • Caro Senhor.

    Corrijo o que disse. Esse texto é referido por Pedro Mexia nas suas crónicas, mas é da autoria de Mário Henrique-Leiria nos «Contos do Gin Tónic», datados de 1973.

    Aliío Dias de Sá (Évora)

    By Anonymous Anónimo, at 25 de novembro de 2006 às 10:10  

  • Em relação ao texto que refere, irei procurar. A única coisa de parecido que me lembro de ter lido foi no "Para acabar de vez com a cultura", do Woody Allen, em que ele conta que, após sair ainda molhado do banho, atendeu o telefone e ficou, devido ao choque que apanhou, a descrever órbitas à volta do candeeiro.

    Concordo com o que diz ("O plágio só retira dignidade a quem o utiliza") mas vamos à definição:

    "Plágio" é a "cópia fraudulenta do trabalho de outrem que um autor apresenta como sua", sendo que fraude implica dolo, má-fé, "acto consciente com que alguém mantém ou induz outrem em erro; atitude voluntária de um indivíduo com o objectivo de prejudicar outro." (isto sim, é um plágio... de um diccionário!)

    Ora, evidentemente não é o caso. Li o livro que cita há dezenas de anos atrás e, francamente, não me recordo de nenhum texto parecido. MAs, como digo, vou ver.

    Finalmente, digo-lhe, também, que estou nisto dos "blog's" apenas por brincadeira e para me servir de escape, sem qualquer objectivo de "entrar para a Literatura", pelo que não tem pés nem cabeça a hipótese de eu andar a copiar textos dos outros - isso não me daria gozo nenhum, para além de ser desonesto, o que não "casa" com a minha personalidade, pelo que não lhe admito uma acusação dessas. Voltarei à tarde depois de consultar o livro em questão.

    By Blogger cuotidiano, at 25 de novembro de 2006 às 12:46  

  • Acabo de consultar os "Contos do Gin-Tonic". O mais "próximo" que encontro é "Tropicália", em que o sujeito enunciado vai até aos trópicos e, quando está preparando o almoço na cozinha de um 10º andar, vê na varanda um elefante, o qual convida para beber um copo, o que acontece. Passa um tempo e à noite já não o vê lá, pelo que resolve procurá-lo na rua. Quando regressa (sem o ter conseguido), em vez do elefante tem lá uma bela morena e umas garrafas de gin, concluindo "é a vida.".

    Se acha que é a mesma coisa que o que eu escrevi, é pura má-fé e muito ódio, pelo que só posso concluir que o nome que usa é falso (pois eu não conheço ninguém com esse nome) e está a chatear-me ou para resolver qualquer frustração pessoal, ou para se exibir perante alguém. Em todo o caso, faça-me um favor - desapareça!

    By Blogger cuotidiano, at 25 de novembro de 2006 às 18:09  

  • Tens que dizer a palavra mágica! ;-)
    Um grande beijo!

    By Blogger APC, at 25 de novembro de 2006 às 18:34  

  • Mas não é que tem gente pra tudo?!
    Tenha dó!!!!

    Um beijo bem grande, pra ti.
    Um "sobreiro!", para quem de direito.

    By Blogger Leticia Gabian, at 26 de novembro de 2006 às 03:00  

  • Fico contente de ver que voltaste à magia do texto e, como sempre, repleto de surrealismo e bom sentido de humor. Gosto muito de te ler. Continua sempre!

    Um abraço amigo

    El Madrigal

    By Anonymous Anónimo, at 26 de novembro de 2006 às 05:55  

  • Há gente sem nada de interessante para fazer, realmente...

    Continua a fazer-me rir, se fazes o favor, Cuotidiano! :)

    By Blogger Patrícia, at 28 de novembro de 2006 às 22:29  

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