CUOTIDIANO

quinta-feira, abril 26, 2007

O traficante (Parte I)

Ano: 2069. Local: aqui.

Pois aqui estou. Dentro. Sim, na prisa, na choça, dentro. E porquê? Porque fui condenado por tráfico. Eu explico. Comecei a consumir apenas por curiosidade, a curiosidade deu lugar à necessidade, depois, quando as necessidades aumentaram, tive que começar a vender para satisfazer as minha próprias carências e... acabei apanhado.

Mas deixem-me fazer uma breve cronologia para que percebam todo o contexto e não comecem, desde já, a fazer julgamentos sumários, como fariam três beterrabas a um bife lilás (não perceberam a piada? ... são coisas modernas, é natural que não entendam, ainda estão umas dezenas de anos atrasados). Ah, já me esquecia – o tráfico que eu fazia era de hidratos de carbono, não de esteróides nem de expressões idiomáticas; nada disso, eu não sou desses, atenção! Bom, mas vamos lá do princípio, apenas com os acontecimentos mais relevantes para vos enquadrar.

2010: Proibição dos enchidos.
2015: Defenestração do último fumador.
2020: Electrocussão do penúltimo alcoólico (o último foi para o Museu de Cera de Madame Tussaud, em Londres). Início dos trabalhos preparatórios do aeroporto da Ota.
2025: Sodomização do Pai Natal por uns putos da escola C+S de Fitares. (Este acontecimento não foi muito importante para nós, humanos, mas há que ter também respeito pelas renas, já que, pelo menos uma delas - Rudolfo, o Penca Azul – é minha leitora assídua).
2030: Obrigatoriedade do jogging a partir dos 11 meses de idade ou de um metro de altura (não confundir com peso).
2035: Reprodução obrigatória por fertilização “in-vitro”.
2040: Proibição da pesca de peixes gordos e da caça de animais terrestres gordos e vice-versa.
2045: Ilegalização de todas as gorduras animais e vegetais e dos desodorizantes em forma de pénis. Fim dos trabalhos preparatórios do aeroporto da Ota e opção governativa pelo uso de para-pente em vez de avião.
2050: Supressão do sexo selvagem ou de qualquer outro tipo, excepto se efectuado pela Internet e com animais domésticos do outro lado do ecrã.
2055: Ilegalização dos hidratos de carbono.
2060: Proibição da asneira, calão ou de qualquer tipo de praguejamento, incluindo as expressões “Paulo Portas” e “Abdulah para ti também”, para além da palavra “frigorífico”, esta apenas por um capricho palerma do legislador.
2065: Primeiras grandes manifestações e jornadas de luta de obesos, seguidas das primeiras grandes manifestações também (mas curtinhas, já que as forças não eram muitas) de apenas não esqueléticos.

Agora que estão situados, facilmente perceberão - um homem não é de ferro! – que, às tantas, uma pessoa cede à tentação. Comecei, apenas, por sonhar com uma batatinha, só uma, uminha, para acompanhar o meu “Vita-Prota Perfect”, o obrigatório comprimido da hora de almoço (e que, hélas!, o substitui...). Depois, e sabendo desses meus desejos, um amigo indicou-me um vendedor de batatas que, todos os dias às 4 da manhã, estava numa determinada esquina pouco iluminada (mas muito cheirosa) no Bairro Alto. Lá fui. Comprei só uma, para experimentar, tanto mais que eram caríssimas. Chegado a casa, cozi-a e, devagarinho, saboreei-a. Que delícia, há quanto tempo! (na verdade, a última tinha-a comido salteada, no Verão de 2054, acompanhada com dois ovos ilegalmente estrelados em manteiga e por um pêssego de sabor a cerveja com álcool).

Na manhã seguinte, a minha namorada desconfiou que qualquer coisa de estranho se passava, não só pelo meu ar de satisfeito - mesmo após uma crise de impotência com o gato dela pela Internet - como, também, por um altamente denunciador arroto matinal.

- Andas metido nos hidratos de carbono, eu sei; vi muito bem a que horas chegaste ontem e o estado em que estavas, com aquela cara de parvo sorridente com que se deitam todos os agarrados à batata!

disse-me com ar reprovador. Nem perguntei como é que ela sabia disso só para não piorar, ainda mais, a situação. Vai daí, disfarcei-me de lagarta parda e resolvi pirar-me sorrateiramente, enquanto ela me insultava sem perceber que o horroroso verme que estava a varrer para fora de casa, afinal, era eu. (E depois eu é que sou o totó do drogado!...)

- Hidratado! Não passas de um carbonatado! Por isso é que nunca terei filhos contigo! E também porque és um cocó de peru azul!

gritava ela já bem longe - que eu rastejo depressa. (Bem sei que também não perceberam o último insulto dela mas vão-se habituando que, para a frente, há mais – conforme já vos expliquei, são coisas modernas... e parvas também).

Bom, adiante. Enquanto ela continuava naquilo (“desgraçado!”, “hérnia de peixe surdo!”, ...) eu punha-me a caminho do Bairro Alto, ansioso por mais uma compra.

- E se hoje experimentasse umas massinhas italianas, será que aquele dealer também as vende?

pensei eu, enquanto apanhava um autocarro ecológico, movido a ventosidade sonora expelida pelo ânus (*) sempre diligente de uma pobre vaca que, atada no andar de baixo, tinha inserido na dita cavidade um tubo que, daí, ia directo para o motor. Ouviu-se mais um estampido e lá fomos nós.

- Massinhas, hummm...



(Continua)

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(*) – Como em 2060 foi proibida a asneira e o praguejamento, não posso dizer “peido” (Olha, afinal disse, lá vou eu ser multado, porra! – Outra, que chatice. Olha outra, ‘tou lixado! – Oh não, outra vez. Bem, vou pagar cá uma multa...)

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