O traficante (Parte I)
Ano: 2069. Local: aqui.
Pois aqui estou. Dentro. Sim, na prisa, na choça, dentro. E porquê? Porque fui condenado por tráfico. Eu explico. Comecei a consumir apenas por curiosidade, a curiosidade deu lugar à necessidade, depois, quando as necessidades aumentaram, tive que começar a vender para satisfazer as minha próprias carências e... acabei apanhado.
Mas deixem-me fazer uma breve cronologia para que percebam todo o contexto e não comecem, desde já, a fazer julgamentos sumários, como fariam três beterrabas a um bife lilás (não perceberam a piada? ... são coisas modernas, é natural que não entendam, ainda estão umas dezenas de anos atrasados). Ah, já me esquecia – o tráfico que eu fazia era de hidratos de carbono, não de esteróides nem de expressões idiomáticas; nada disso, eu não sou desses, atenção! Bom, mas vamos lá do princípio, apenas com os acontecimentos mais relevantes para vos enquadrar.
2010: Proibição dos enchidos.
2015: Defenestração do último fumador.
2020: Electrocussão do penúltimo alcoólico (o último foi para o Museu de Cera de Madame Tussaud, em Londres). Início dos trabalhos preparatórios do aeroporto da Ota.
2025: Sodomização do Pai Natal por uns putos da escola C+S de Fitares. (Este acontecimento não foi muito importante para nós, humanos, mas há que ter também respeito pelas renas, já que, pelo menos uma delas - Rudolfo, o Penca Azul – é minha leitora assídua).
2030: Obrigatoriedade do jogging a partir dos 11 meses de idade ou de um metro de altura (não confundir com peso).
2035: Reprodução obrigatória por fertilização “in-vitro”.
2040: Proibição da pesca de peixes gordos e da caça de animais terrestres gordos e vice-versa.
2045: Ilegalização de todas as gorduras animais e vegetais e dos desodorizantes em forma de pénis. Fim dos trabalhos preparatórios do aeroporto da Ota e opção governativa pelo uso de para-pente em vez de avião.
2050: Supressão do sexo selvagem ou de qualquer outro tipo, excepto se efectuado pela Internet e com animais domésticos do outro lado do ecrã.
2055: Ilegalização dos hidratos de carbono.
2060: Proibição da asneira, calão ou de qualquer tipo de praguejamento, incluindo as expressões “Paulo Portas” e “Abdulah para ti também”, para além da palavra “frigorífico”, esta apenas por um capricho palerma do legislador.
2065: Primeiras grandes manifestações e jornadas de luta de obesos, seguidas das primeiras grandes manifestações também (mas curtinhas, já que as forças não eram muitas) de apenas não esqueléticos.
Agora que estão situados, facilmente perceberão - um homem não é de ferro! – que, às tantas, uma pessoa cede à tentação. Comecei, apenas, por sonhar com uma batatinha, só uma, uminha, para acompanhar o meu “Vita-Prota Perfect”, o obrigatório comprimido da hora de almoço (e que, hélas!, o substitui...). Depois, e sabendo desses meus desejos, um amigo indicou-me um vendedor de batatas que, todos os dias às 4 da manhã, estava numa determinada esquina pouco iluminada (mas muito cheirosa) no Bairro Alto. Lá fui. Comprei só uma, para experimentar, tanto mais que eram caríssimas. Chegado a casa, cozi-a e, devagarinho, saboreei-a. Que delícia, há quanto tempo! (na verdade, a última tinha-a comido salteada, no Verão de 2054, acompanhada com dois ovos ilegalmente estrelados em manteiga e por um pêssego de sabor a cerveja com álcool).
Na manhã seguinte, a minha namorada desconfiou que qualquer coisa de estranho se passava, não só pelo meu ar de satisfeito - mesmo após uma crise de impotência com o gato dela pela Internet - como, também, por um altamente denunciador arroto matinal.
- Andas metido nos hidratos de carbono, eu sei; vi muito bem a que horas chegaste ontem e o estado em que estavas, com aquela cara de parvo sorridente com que se deitam todos os agarrados à batata!
disse-me com ar reprovador. Nem perguntei como é que ela sabia disso só para não piorar, ainda mais, a situação. Vai daí, disfarcei-me de lagarta parda e resolvi pirar-me sorrateiramente, enquanto ela me insultava sem perceber que o horroroso verme que estava a varrer para fora de casa, afinal, era eu. (E depois eu é que sou o totó do drogado!...)
- Hidratado! Não passas de um carbonatado! Por isso é que nunca terei filhos contigo! E também porque és um cocó de peru azul!
gritava ela já bem longe - que eu rastejo depressa. (Bem sei que também não perceberam o último insulto dela mas vão-se habituando que, para a frente, há mais – conforme já vos expliquei, são coisas modernas... e parvas também).
Bom, adiante. Enquanto ela continuava naquilo (“desgraçado!”, “hérnia de peixe surdo!”, ...) eu punha-me a caminho do Bairro Alto, ansioso por mais uma compra.
- E se hoje experimentasse umas massinhas italianas, será que aquele dealer também as vende?
pensei eu, enquanto apanhava um autocarro ecológico, movido a ventosidade sonora expelida pelo ânus (*) sempre diligente de uma pobre vaca que, atada no andar de baixo, tinha inserido na dita cavidade um tubo que, daí, ia directo para o motor. Ouviu-se mais um estampido e lá fomos nós.
- Massinhas, hummm...
(Continua)
_______________________________________
(*) – Como em 2060 foi proibida a asneira e o praguejamento, não posso dizer “peido” (Olha, afinal disse, lá vou eu ser multado, porra! – Outra, que chatice. Olha outra, ‘tou lixado! – Oh não, outra vez. Bem, vou pagar cá uma multa...)
Pois aqui estou. Dentro. Sim, na prisa, na choça, dentro. E porquê? Porque fui condenado por tráfico. Eu explico. Comecei a consumir apenas por curiosidade, a curiosidade deu lugar à necessidade, depois, quando as necessidades aumentaram, tive que começar a vender para satisfazer as minha próprias carências e... acabei apanhado.
Mas deixem-me fazer uma breve cronologia para que percebam todo o contexto e não comecem, desde já, a fazer julgamentos sumários, como fariam três beterrabas a um bife lilás (não perceberam a piada? ... são coisas modernas, é natural que não entendam, ainda estão umas dezenas de anos atrasados). Ah, já me esquecia – o tráfico que eu fazia era de hidratos de carbono, não de esteróides nem de expressões idiomáticas; nada disso, eu não sou desses, atenção! Bom, mas vamos lá do princípio, apenas com os acontecimentos mais relevantes para vos enquadrar.
2010: Proibição dos enchidos.
2015: Defenestração do último fumador.
2020: Electrocussão do penúltimo alcoólico (o último foi para o Museu de Cera de Madame Tussaud, em Londres). Início dos trabalhos preparatórios do aeroporto da Ota.
2025: Sodomização do Pai Natal por uns putos da escola C+S de Fitares. (Este acontecimento não foi muito importante para nós, humanos, mas há que ter também respeito pelas renas, já que, pelo menos uma delas - Rudolfo, o Penca Azul – é minha leitora assídua).
2030: Obrigatoriedade do jogging a partir dos 11 meses de idade ou de um metro de altura (não confundir com peso).
2035: Reprodução obrigatória por fertilização “in-vitro”.
2040: Proibição da pesca de peixes gordos e da caça de animais terrestres gordos e vice-versa.
2045: Ilegalização de todas as gorduras animais e vegetais e dos desodorizantes em forma de pénis. Fim dos trabalhos preparatórios do aeroporto da Ota e opção governativa pelo uso de para-pente em vez de avião.
2050: Supressão do sexo selvagem ou de qualquer outro tipo, excepto se efectuado pela Internet e com animais domésticos do outro lado do ecrã.
2055: Ilegalização dos hidratos de carbono.
2060: Proibição da asneira, calão ou de qualquer tipo de praguejamento, incluindo as expressões “Paulo Portas” e “Abdulah para ti também”, para além da palavra “frigorífico”, esta apenas por um capricho palerma do legislador.
2065: Primeiras grandes manifestações e jornadas de luta de obesos, seguidas das primeiras grandes manifestações também (mas curtinhas, já que as forças não eram muitas) de apenas não esqueléticos.
Agora que estão situados, facilmente perceberão - um homem não é de ferro! – que, às tantas, uma pessoa cede à tentação. Comecei, apenas, por sonhar com uma batatinha, só uma, uminha, para acompanhar o meu “Vita-Prota Perfect”, o obrigatório comprimido da hora de almoço (e que, hélas!, o substitui...). Depois, e sabendo desses meus desejos, um amigo indicou-me um vendedor de batatas que, todos os dias às 4 da manhã, estava numa determinada esquina pouco iluminada (mas muito cheirosa) no Bairro Alto. Lá fui. Comprei só uma, para experimentar, tanto mais que eram caríssimas. Chegado a casa, cozi-a e, devagarinho, saboreei-a. Que delícia, há quanto tempo! (na verdade, a última tinha-a comido salteada, no Verão de 2054, acompanhada com dois ovos ilegalmente estrelados em manteiga e por um pêssego de sabor a cerveja com álcool).
Na manhã seguinte, a minha namorada desconfiou que qualquer coisa de estranho se passava, não só pelo meu ar de satisfeito - mesmo após uma crise de impotência com o gato dela pela Internet - como, também, por um altamente denunciador arroto matinal.
- Andas metido nos hidratos de carbono, eu sei; vi muito bem a que horas chegaste ontem e o estado em que estavas, com aquela cara de parvo sorridente com que se deitam todos os agarrados à batata!
disse-me com ar reprovador. Nem perguntei como é que ela sabia disso só para não piorar, ainda mais, a situação. Vai daí, disfarcei-me de lagarta parda e resolvi pirar-me sorrateiramente, enquanto ela me insultava sem perceber que o horroroso verme que estava a varrer para fora de casa, afinal, era eu. (E depois eu é que sou o totó do drogado!...)
- Hidratado! Não passas de um carbonatado! Por isso é que nunca terei filhos contigo! E também porque és um cocó de peru azul!
gritava ela já bem longe - que eu rastejo depressa. (Bem sei que também não perceberam o último insulto dela mas vão-se habituando que, para a frente, há mais – conforme já vos expliquei, são coisas modernas... e parvas também).
Bom, adiante. Enquanto ela continuava naquilo (“desgraçado!”, “hérnia de peixe surdo!”, ...) eu punha-me a caminho do Bairro Alto, ansioso por mais uma compra.
- E se hoje experimentasse umas massinhas italianas, será que aquele dealer também as vende?
pensei eu, enquanto apanhava um autocarro ecológico, movido a ventosidade sonora expelida pelo ânus (*) sempre diligente de uma pobre vaca que, atada no andar de baixo, tinha inserido na dita cavidade um tubo que, daí, ia directo para o motor. Ouviu-se mais um estampido e lá fomos nós.
- Massinhas, hummm...
(Continua)
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(*) – Como em 2060 foi proibida a asneira e o praguejamento, não posso dizer “peido” (Olha, afinal disse, lá vou eu ser multado, porra! – Outra, que chatice. Olha outra, ‘tou lixado! – Oh não, outra vez. Bem, vou pagar cá uma multa...)
Etiquetas: conto/crónica
12 Commenários:
Bem... Já sabes!...
E, como já sabes [tudo]...
(...)
:-)
By APC, at 27 de abril de 2007 às 01:22
De uma carbonatada para um hidratado (e que mais ninguém nos ouça, senão aí vem multa, prisão e sei lá mais o quê): quando fores ao Bairro Alto, podes comprar uma paradinha também pra mim, mano? Depois te pago em IReais,tá? Pode ser?
By Leticia Gabian, at 27 de abril de 2007 às 04:30
Os teus contos são um espectáculo.
By Conversa Inútil de Roderick, at 27 de abril de 2007 às 12:18
Bem, mal posso esperar pelo desenlace da história. :) Pobre viciado... Eheheh
Avisa quando publicares, ok?
Beijo
By Patrícia, at 28 de abril de 2007 às 22:53
...obrigada.encantada com a visita.
Cuatidiano, temos uma a.miga que já me tinha falado de sua mãe...
mas não se lembra do nome...
e com esperança, voltará de
cabeça fresca. espero!
:)
obrigada mais uma vez.
ana
By A., at 29 de abril de 2007 às 02:41
...ainda mais encantada. sei que devo a todas essas Pessoas com letra grande, toda a história e essência da Dança em Portugal.
Isabel Santa Rosa, foi uma das Directoras da Compahia (depois de voltar do Brasil), nestes últimos anos de constantes mudanças.
só posso agradecer.eu.apenas eu.
...e mesmo fora de horas,
deixar um abraço.
:)
By A., at 29 de abril de 2007 às 05:58
Um domingo cheio de sonhos.
Beijinhos embrulhados em abraços
By sonhadora, at 29 de abril de 2007 às 10:31
Bem, já percebi que tenho de voltar aqui, com muuuuuiiiiito mais tempo...
Até logo
By Maria, at 29 de abril de 2007 às 22:40
Agora fiquei viciada! Quero mais.
Beijinho*
By Maria P., at 29 de abril de 2007 às 22:44
Tenho-me rido a ler esta crónica...
No fundo, bem lá no fundo, é para chorar, não é?
Beijinhos.
By Licínia Quitério, at 30 de abril de 2007 às 12:29
Como sempre uma grande imaginação por aqui.
Para quando a versão em papel?
:)
By Anónimo, at 1 de maio de 2007 às 00:37
Caro amigo
Obrigado por teres aceite o convite.
Um abraço
Jorge
By Madrigal, at 10 de maio de 2007 às 12:38
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