CUOTIDIANO

domingo, julho 15, 2007

O Comedor de Apelidos

Ele comia apelidos, toda a gente na cidade o sabia. Olhavam para ele com desconfiança, mudavam de passeio só para não o encarar, faziam comentários em surdina.

- Deve ser ainda pior que um assassino de cereais! - e continuavam caminho, bem para longe daquele perigo.

Era de tal forma ostracizado que, quando ia a um restaurante, os empregados deixavam o bloco de notas na mesa, esperando que ele escrevesse o seu pedido e com ele fizesse um avião de papel, que atiraria directamente para a cozinha.

- Sabe-se lá o que pode passar pela cabeça de um comedor de apelidos! Eu cá para mim já me bastou o que me aconteceu com o meu tio, só me faltava agora chegar a casa e chamar-me apenas “Zé” quando, até agora, sempre fui “Zé Silva” – comentava um empregado de mesa para outro que, resguardado atrás de um finíssimo cliente com 27 nomes, ia vigiando o perigoso comedor de apelidos.

Um dia, já farto de tamanha guetagem, resolveu partir para o deserto, numa viagem de retiro e procura espiritual dentro de si mesmo – e também porque tinha fantasias eróticas com camelos. Para a viagem levou dezenas de cantis com litros e litros de água e duas listas telefónicas, esses oásis de apelidos – só os “Santos” davam para 15 dias! Assim era certo que não morreria nem de sede nem de fome. Ou por falta de sexo, já que os camelos eram três.

Todos os dias avançava mais uns quilómetros deserto adentro, só parando à noite para umas horas de meditação. E também para umas.

Quando, ao fim de algum tempo, acabou a primeira lista, decidiu regressar, por forma a não ter problemas de mantimentos. No fim desse dia, enquanto se preparava para a sua costumeira meditação, resolveu comer qualquer coisita pouca, só um “Sá” ou coisa assim, nada de pesado como um “Menezes de Mello” ou um “Rainier de Sousa”, por forma a evitar qualquer perigo de congestão nocturna.

Foi buscar a segunda lista. Pânico total! Mal a viu desatou aos gritos, num tal ataque de histeria que os camelos, disfarçando-se de caracóis, resolveram esconder-se dentro das próprias bossas - então não é que se havia enganado e tinha levado, em vez de uma outra lista telefónica normal, umas “Páginas Amarelas”?! Estava tramado!

Sim, estava tramado, apelidos com açafrão davam-lhe problemas intestinais graves - numa primeira fase, gases com cheiro a pêssego, depois começaria a parir sucessivos “Brunos Nogueira” pelos ouvidos, dizendo piadas parvas e, numa fase final até aquele dia nunca atingida, morreria em lenta agonia quando um Alberto João Jardim, em ciclos infindáveis, poria só a cabeça de fora aos delicados urros “eu sou um Zulu, por isso estou no teu tu!” e recolheria ao aconchego intestinal. Era o fim. A humilhação suprema, um Alberto João Jardim dentro de si. E, ainda por cima, ali.

Era, de facto, o fim. Assim foi.


Assim é. Fim.

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