CUOTIDIANO

sábado, junho 14, 2008

Se faz favor

Quando a minha morte me preencher inteiramente, eu juro-te que morro, não mais vais ter de me aturar. Prometo-te.

Por enquanto, não. Desculpa. Apetece-me ainda ouvir pássaros. E crianças. E nascentes. Quando me fartar, eu aviso. Aliás, morro.

Acredita: quando a minha morte for a melhor saída, quando eu estiver quase, mesmo quase a ficar completamente farto da vida, quando me doerem as pernas, os olhos, a cabeça, as memórias e me tiverem morrido os desejos e os amores que nunca tive, eu prometo-te que morro. Escusas de ficar a tomar conta de mim, um farrapo disfarçado de pessoa, fingindo que um último sorriso me é importante. Não. Quando eu vir que a morte é o meu melhor abraço, morro, fica tu descansada.

Por hoje, desculpa, não me apetece. Prefiro ficar aqui, quase imóvel, quase parvo, quase inerte, mas a ver este último pôr-do-sol, vendo os gestos que vão sobrando do entardecer, vendo quem passa arrastando desejos e sonhos, lembrar-me de quem já passou e nem sequer demos por isso, ouvindo as ondas a despedirem-se do mar. Desculpa, mas não me apetece morrer já.

Eu sei que estás profundamente chateada com o teres de ficar aqui a limpares-me, a veres-me com um ar infinitamente plácido esperando o passar do tempo e das capacidades básicas, tentando beber o que me resta dos prazeres da vida por uma palhinha que me ajudas a pôr na boca. Sei que estás farta de olhar por mim, de olhar para mim, olhando-me a acabar a cada ofegar, a cada passo, vendo os meus olhos estúpidos a percorrerem dementemente os corpos adolescentes e excelsos de vida de todos os passantes – cães incluídos. Desculpa.

Agora pede-me outra limonada, se faz favor. Sabes, só me resta a educação e a humildade. Eu que achei que poderia ter conduzido exércitos, eu que pensei dominar mundos paredes meias comigo mesmo, eu que já fui alguém, espero apenas pela tua complacência e generosidade para mais uma simples limonada. Se faz favor.

Mas, acredita, quando a minha morte me preencher inteiramente, eu juro-te que morro, não mais vais ter de me aturar. Prometo-te. Pede-me é a limonada. Se faz favor.

Etiquetas:

3 Commenários:

  • E já estás morto! Lindo!


    *fjjkc

    By Blogger Balbino, at 15 de junho de 2008 às 00:38  

  • "Quando a minha morte for a melhor saída, quando eu estiver quase, mesmo quase a ficar completamente farto da vida, quando me doerem as pernas, os olhos, a cabeça, as memórias e me tiverem morrido os desejos e os amores que nunca tive, eu prometo-te que morro. - gostei mesmo!

    Duro, contudo, bonito. Porque a decadência só está completa quando a auto-determinação morreu. Até lá, venha a limonada ou outra coisa qualquer apetecida ainda...

    Quando eu vir que a morte é o meu melhor abraço, morro (...) - pela segunda vez: gostei mesmo!

    Um beijo

    By Blogger APC, at 16 de junho de 2008 às 03:21  

  • (Acho que me esqueci de umas aspas pelo caminho. Não faz mal, pois não?)

    By Blogger APC, at 16 de junho de 2008 às 03:22  

Enviar um comentário

<< Home