CUOTIDIANO

segunda-feira, setembro 17, 2012

TRILOGIA DO LUAR (PARA OS ÚLTIMOS AMANTES, NO MAIS VERDADEIRO SENTIDO DO TERMO)


I

Reflexos

Depois de agitar (antes de usar, como convém) a sangria do jantar e afins posteriores, ela quis enviar-lhe o reflexo do seu olhar na Lua (lá em cima, tão longe, tão longe quanto ele estava), para que se sentissem mais próximos do que a própria ideia de distância permitiria, partilhando os intranquilos cheiros e sons da noite, os desejos, a própria Lua - partilhando-se sem corpos, mas em cúmplices olhares.

Ela tinha um plano: Primeiro olhava a lagoa, depois seu olhar reflectir-se-ia no Mar da Tranquilidade (mesmo ali ao virar da esquina da bandeira do Armstrong) e, depois ainda, o reflexo tornaria a descer acertando no coração dele, provocando um “efeito borboleta” de consequências imprevisíveis. Mas como o alegre torpor da sangria estava a desvanecer-se e a realidade começava a atacar infamemente, lembrou que se havia prometido, depois do último mergulho impulsivo que havia dado, que nunca mais daria ponto sem nó, não mais se afogaria num abraço, não garantindo, primeiro, que haveria um salva-vidas por perto – nem que fosse uma frase

(desculpa lá que sou claustrofóbica)

ou outra coisa qualquer, de forma a que pudesse fugir sempre que quisesse, sem se comprometer, sem nunca chegar ao ponto de não-retorno, como o têm de fazer os pilotos de avião que aterram nas ilhas.

Então passou ao Plano B: O joelho esquerdo dele tornou-se o alvo já que, mesmo que ele apenas tropeçasse à conta desse reflexo, saberia por certo que aquela teria sido mais uma piadola dela – ninguém tropeça deitado a não ser em contos parvos, não é?

 

Mas ele havia adormecido, de tanto esperar pelo reflexo dela na própria noite – horas sem minutos e minutos sem segundos, de tão só que o tempo estava –, e a madrugada embalava-lhe o corpo, qual navio à deriva, enquanto sonhava que ela lhe havia oferecido o reflexo da Lua numa lagoa, onde ambos tomavam banho, desnudos de tudo, sem distância, sem medos, sem retorno.

 

II

Perplexos

Depois acharam que a virtualidade era sinónimo de virtude, que paixão era vontade, que o tempo deixaria de existir se fizessem muita (mas muita) força - e assim -, depois fizeram amor sem nunca se tocarem – as tecnologias às vezes ajudam a imaginação… -, depois fizeram-se casal sem nunca discutirem quem é que, no dia seguinte de manhã, iria primeiro à casa de banho,

(despacha-te que estou com um atraso brutal e coisas do género humano)

depois brincaram com as palavras, com partes dos corpos, diletantes brincaram com os corpos distantes - quais ilhas é espera de um tsunami de mar -, brincaram um com o outro até à exaustão das vozes e dos delírios e dos copos, diluídos na madrugada que era deles. Ou seja, na única, primeira e última verdadeira madrugada dos corpos.

Claro está que concluíram que, afinal, havia sido o tempo que os esquecera, não ao contrário. Felizmente. Assim, nada havia que os pudesse deter – tinham tudo para que desse errado e, consequentemente, tudo tinham para que desse certo. Ele amava-a, ela esperava-o, ele desesperava por ela, ela suspirava-o, seus corpos tentavam reproduzir os gritos da alma. Sem sucesso, é certo, mas tudo valia por todo aquele esforço, por eles, por um “nós” que se formava, qual galáxia nascida de um estranho buraco negro, violando todas as leis da Física. E da Vida. E assim de novo. Mas eram eles, ali, naquele momento, quem fazia nascer toda uma nova espécie, os filhos do Amor. Foleiro? Mas verdade. A Verdade. Disfarçada de Vida.

 

III

Anexos

Depois veio a Vida disfarçada de tempestade num qualquer deserto, depois vieram os conselhos – deles ou de quaisquer outros, para eles ou para os outros em que se tornariam -, depois veio a realidade indecentemente disfarçada de realidade, depois vieram as horas de trabalho e as chatices e os subsídios a menos e os sindicalistas e o patronato e as insuportáveis séries televisivas e o empréstimo bancário que foi recusado e a mulher-a-dias que se enganou na sopa e o papel higiénico que acabou e a paciência que se esgotou e o assimétrico tempo que parece que passa mais depressa para uns que para outros mesmo quando parece que as almas se haviam fundido há muito e quando o periquito tem vontade de fugir e quando quem existe deveria ser exterminado só para não atrapalhar a própria existência quando tudo e as noticias e todos os locais do mundo os soterravam quando até as palavras fugiam para o deserto só para terem a certeza de que não se cruzariam com sinónimos…

 

Pára tudo! Chiça!

(Agora? Agora sobra apenas a Saudade. Disfarçada de Morte.)


 

4 Commenários:

  • Bela trilogia. Ia-a lendo, e ia por mim pensando: será que os amantes da história escreveram demais e agiram de menos? Às vezes acontece, àqueles que descrevem tão bem os seus sentimentos, que preferem sentir a dor e poder escrever sobre ela, do que serem felizes e ficarem sem texto... E o texto está magnífico!

    By Blogger APC, at 24 de setembro de 2012 às 03:00  

  • :D

    By Anonymous Anónimo, at 27 de setembro de 2012 às 10:47  

  • A saudade não se pode disfarçar de morte, porque a saudade é lembrança e a lembrança acalenta o desejo de vida! :)

    By Anonymous Anónimo, at 28 de setembro de 2012 às 01:07  

  • Caro anónimo de 28 de Setembro: Discordo completamente do que afirma mas, como por princípio nunca respondo a comentários, mais um ficará sem resposta...

    Agradecendo-lhe a gentileza de ter aparecido por esta toca

    Moi

    By Blogger cuotidiano, at 16 de fevereiro de 2013 às 18:12  

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