CUOTIDIANO

segunda-feira, setembro 17, 2007

Levezas

- Ah pronto... sendo assim estou muito mais descansada e retiro a mágoa – disse ela com um sorriso de açúcar amarelo.

Tinha estado, horas e gestos a fio, a gastar as palavras e os pequenos silêncios, dando-lhe generosa mas dolorosamente a conhecer toda a mágoa que transportava, depois de todos os barcos que lhe passaram ao longe, bem perto das lágrimas, depois de todas as aves sem céu que lhe haviam morrido às mãos.

Ele despejara-lhe para cima com dois quilos de palavras traçadas, meio litro de ar sério, duas colheres de sopa de profundidade, numa sempre renovada receita de lugares-comuns – ah e tal, que a mágoa era uma dor efémera que podia chegar a ser um bálsamo para a descoberta de novas magias afectivas e para a cura das nossas feridas, que “branco é galinha o põe” e que, se tomada de 8 em 8 horas, era excelente para a diarreia.

- É verdade, a sério, estou muito melhor... – disse ela, enquanto se afastava, perante o olhar incrédulo dele, que relampejava a palavra “ingrata” pelas órbitas.

Ela sorriu. Mas agora a uma lua transbordante de todas as cores.

Sentia-se leve. Sem aquele lugar. Sem ele-comum. Leve.

Leve de novo.

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9 Commenários:

  • Interessante...afinal com os lugares-comuns ele ajudou-a mesmo...mas o mérito é dela por se se ver livre dele

    By Blogger redonda, at 17 de setembro de 2007 às 12:40  

  • Leste-me nas entrelinhas?

    By Blogger a miúda, at 18 de setembro de 2007 às 00:26  

  • Ah, e a mágoa também é boa para a dieta!
    :)

    By Blogger a miúda, at 18 de setembro de 2007 às 00:28  

  • ... Depois de todos os barcos que lhe passaram ao longe, bem perto das lágrimas, depois de todas as aves sem céu que lhe haviam morrido às mãos.

    Um beijo... sem eles-comuns.

    By Blogger APC, at 18 de setembro de 2007 às 17:49  

  • Lavou. Descascou. Raspou. Cortou. Bateu e pré-aqueceu. Meteu. Esperou. Espreitou. Sorriu. Esperou. O soufflé de couve-flor estava alto e vistoso. Retirou-o com cuidado e colocou-o na mesa, em cima da base trazida de uma viagem a Talavera de La Reina, que tinha um par de bandarilhas. Sentou-se e apoiou os cotovelos na mesa, o queixo em ambas as mãos. A humidade do cozinhado escapava-se em ténue nuvem, desenhando figuras estranhas na cozinha. O soufflé, como que por exaustão, não se aguentou na manteiga e no leite, e veio por aí a baixo. Ela não estranhou. Ficou apenas a pensar em como uma vida tão breve podia cansar tanto.

    By Blogger Rui, at 19 de setembro de 2007 às 17:28  

  • ... Ou em como uma vida tão leve podia pesar tanto.

    By Blogger APC, at 19 de setembro de 2007 às 18:01  

  • Gostei mesmo. Comovente. Todos procuramos um lugar-incomum, não é?

    Beijinho.

    By Blogger Licínia Quitério, at 20 de setembro de 2007 às 09:09  

  • O peso da solidão em momentos de dor é tramado...acho que o silêncio quente dum abraço inesperado é remédio santo:)

    Cada vez que leio este texto esboço um sorriso...é tão simples que me faz sentir leve:)

    Beijo

    By Anonymous Anónimo, at 22 de setembro de 2007 às 11:08  

  • Hum, finalmente percebi o porquê do título!
    :)

    By Blogger a miúda, at 28 de setembro de 2007 às 22:47  

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