CUOTIDIANO

domingo, setembro 10, 2006

Ainda bem

Quando eu era pequeno costumava ir, de mão dada, com meu Pai ao Jardim Zoológico, ao Aquário Vasco da Gama, ao bailado, onde via minha Mãe dançar - e lhe apontava com uma lanterna que trazia de casa às escondidas para que os holofotes dela fossem maiores do que os das outras (bem feito!) - ao Planetário... e ele ia-me explicando tudo; o Mundo, o Universo, os sons, os medos, as vontades e, até (loucura das loucuras!), o girar dos planetas - para mim ele sabia mesmo tudo, era o meu herói, aquele que salvava a Humanidade da ignorância (qual Super-Homem, qual quê!).

Depois veio a adolescência e com ela as parvoíces do costume (por serem normais e habituais não deixam de ser o que são - ou estarei a dizer isto apenas porque tenho agora a idade que tinha meu Pai na altura?) disfarçadas de rebeldias e depois as rebaldarias e as noitadas e os copos e os desejos e as horas e os dias e as noites todos disfarçados de segundos e a pressa de viver arraçada de James Dean e a urgência de viver e a premência e a sede de estar vivo e tudo o mais e seja o que for desde que não fizesse sentido não tivesse objectivo e não apontasse para qualquer direcção que não fosse o que quer que fosse.

Quando, finalmente, voltava para casa, meu Pai esperava-me na sala, fossem uma, duas, quatro, seis da manhã, sentado num velho sofá e pedia-me para me sentar. E aí vinha a pergunta de sempre: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. Eu sorria (dos copos, de não saber a resposta?) e ia-me deitar, com um ar idiota e superior de quem julgava que tinha nas mãos não só o seu destino como o do Mundo.

Dias e dias, noites e noites, tempos e tempos passaram, turbilhões de tudo e nada passaram também e sempre a mesma frase: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. E eu sorria, outra vez, sempre.

Até que houve um dia em que “A Frase” mudou – passou a ser “Desisto. Pelos vistos, já não consigo fazer nada de ti. Felizmente não falta muito para que vás para a tropa e, aí sim, farão de ti um homem”.

(Parêntesis: Na altura havia a guerra colonial, África, milhares de mortos e estropiados, mas o medo, o desespero e a angústia passavam ao terceiro copo - ou seria ao décimo, não me consigo lembrar...).

Até que fiz dezoito anos, dei o nome, e acabei por receber um papel com a data dos meus exames físicos, para ver se seguia directo para General ou para o ainda mais prestigiante cargo de Descascador de Batatas.

Na véspera desses testes, juntei os amigos do costume e passámos a noite em claro – percorremos todos os sítios que havia a percorrer, percorremos o passado a correr, corremos o futuro com ar altivo e convencido de quem sabe como tudo se iria passar – copos a mais, medos a menos...

Obviamente, no dia seguinte (ou melhor, nas horas seguintes da noite) e nos testes de aptidão tropal, chumbei – juntamente comigo um maneta e um portador de uma carta do Instituto de Oncologia que, provavelmente, dizia “se faz favor deixem este gajo em paz nos últimos tempos da sua vida”.

Dali saído, retomei a noitada anterior acrescida de comemorações pelo chumbo e só cheguei a casa quando já o sol nascia e a manhã dançava nos telhados. Meu Pai, evidentemente, esperava-me. “Onde é que andaste este tempo todo?”

Respondi-lhe que tinha ido fazer os testes para a tropa e que tinha chumbado, o que fazia, na minha óptica, com que me safasse da guerra colonial (eventualmente, da morte) e, no que eu esperava que fosse a óptica dele, com que nunca me tornasse um homem.

Com lágrimas nos olhos, abraçou-me e disse: “Ainda bem, filho, ainda bem!”

PS - Esta história é uma adaptação pessoal de uma outra que ouvi contada pelo "Bruce, the Boss" num espectáculo ao vivo e que tinha como pano de fundo a guerra do Vietname.

5 Commenários:

  • Gostei muito desta história. Não sei se o parecendo tanto é mesmo verdadeira. Mas gostei do que é contado e de como é contado.
    Um beijinho

    By Blogger redonda, at 10 de setembro de 2006 às 23:37  

  • Não é verdade, é apenas ficção - é que "já não sou do tempo" da guerra colobial"

    Mas, como diz o "Inimigo Público", "se não aconteceu poderia ter acontecido"

    By Blogger cuotidiano, at 11 de setembro de 2006 às 00:11  

  • Aconteceu sim, de facto. Não contigo, meu cuotidiano, mas com alguém e bem conhecido....
    beijos

    By Anonymous Anónimo, at 14 de setembro de 2006 às 11:16  

  • Cuotidiano,não escreves desde o dia 10!!!! Não pode ser! Fazes-nos falta.
    Beijocas

    By Anonymous Anónimo, at 14 de setembro de 2006 às 11:19  

  • Pois, não poderia ser real, já que, quando dizes que tens agora a idade que o teu pai teria quando eras adolescente, estás a dizer que terás entre os 35 e os 40, mais coisa menos coisa. Não que o teu pai não o pudesse ser muito mais tarde, é claro, mas as probabilidades é que são poucas, ainda mais sendo tu o 1º filho, e, em princípio, único). Para teres andado na guerra, terias que ter entre os 55 e os 60, contas feitas por alto.
    Este é o tipo de raciocínio (cálculos sobre especulação) a que convida o meu post, aliás (lol).
    É uma forma meio tonta, esta, de te dizer "olá, boa noite!", né? :-)

    By Blogger APC, at 16 de setembro de 2006 às 05:43  

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