Ainda bem
Quando eu era pequeno costumava ir, de mão dada, com meu Pai ao Jardim Zoológico, ao Aquário Vasco da Gama, ao bailado, onde via minha Mãe dançar - e lhe apontava com uma lanterna que trazia de casa às escondidas para que os holofotes dela fossem maiores do que os das outras (bem feito!) - ao Planetário... e ele ia-me explicando tudo; o Mundo, o Universo, os sons, os medos, as vontades e, até (loucura das loucuras!), o girar dos planetas - para mim ele sabia mesmo tudo, era o meu herói, aquele que salvava a Humanidade da ignorância (qual Super-Homem, qual quê!).
Depois veio a adolescência e com ela as parvoíces do costume (por serem normais e habituais não deixam de ser o que são - ou estarei a dizer isto apenas porque tenho agora a idade que tinha meu Pai na altura?) disfarçadas de rebeldias e depois as rebaldarias e as noitadas e os copos e os desejos e as horas e os dias e as noites todos disfarçados de segundos e a pressa de viver arraçada de James Dean e a urgência de viver e a premência e a sede de estar vivo e tudo o mais e seja o que for desde que não fizesse sentido não tivesse objectivo e não apontasse para qualquer direcção que não fosse o que quer que fosse.
Quando, finalmente, voltava para casa, meu Pai esperava-me na sala, fossem uma, duas, quatro, seis da manhã, sentado num velho sofá e pedia-me para me sentar. E aí vinha a pergunta de sempre: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. Eu sorria (dos copos, de não saber a resposta?) e ia-me deitar, com um ar idiota e superior de quem julgava que tinha nas mãos não só o seu destino como o do Mundo.
Dias e dias, noites e noites, tempos e tempos passaram, turbilhões de tudo e nada passaram também e sempre a mesma frase: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. E eu sorria, outra vez, sempre.
Até que houve um dia em que “A Frase” mudou – passou a ser “Desisto. Pelos vistos, já não consigo fazer nada de ti. Felizmente não falta muito para que vás para a tropa e, aí sim, farão de ti um homem”.
(Parêntesis: Na altura havia a guerra colonial, África, milhares de mortos e estropiados, mas o medo, o desespero e a angústia passavam ao terceiro copo - ou seria ao décimo, não me consigo lembrar...).
Até que fiz dezoito anos, dei o nome, e acabei por receber um papel com a data dos meus exames físicos, para ver se seguia directo para General ou para o ainda mais prestigiante cargo de Descascador de Batatas.
Na véspera desses testes, juntei os amigos do costume e passámos a noite em claro – percorremos todos os sítios que havia a percorrer, percorremos o passado a correr, corremos o futuro com ar altivo e convencido de quem sabe como tudo se iria passar – copos a mais, medos a menos...
Obviamente, no dia seguinte (ou melhor, nas horas seguintes da noite) e nos testes de aptidão tropal, chumbei – juntamente comigo um maneta e um portador de uma carta do Instituto de Oncologia que, provavelmente, dizia “se faz favor deixem este gajo em paz nos últimos tempos da sua vida”.
Dali saído, retomei a noitada anterior acrescida de comemorações pelo chumbo e só cheguei a casa quando já o sol nascia e a manhã dançava nos telhados. Meu Pai, evidentemente, esperava-me. “Onde é que andaste este tempo todo?”
Respondi-lhe que tinha ido fazer os testes para a tropa e que tinha chumbado, o que fazia, na minha óptica, com que me safasse da guerra colonial (eventualmente, da morte) e, no que eu esperava que fosse a óptica dele, com que nunca me tornasse um homem.
Com lágrimas nos olhos, abraçou-me e disse: “Ainda bem, filho, ainda bem!”
Depois veio a adolescência e com ela as parvoíces do costume (por serem normais e habituais não deixam de ser o que são - ou estarei a dizer isto apenas porque tenho agora a idade que tinha meu Pai na altura?) disfarçadas de rebeldias e depois as rebaldarias e as noitadas e os copos e os desejos e as horas e os dias e as noites todos disfarçados de segundos e a pressa de viver arraçada de James Dean e a urgência de viver e a premência e a sede de estar vivo e tudo o mais e seja o que for desde que não fizesse sentido não tivesse objectivo e não apontasse para qualquer direcção que não fosse o que quer que fosse.
Quando, finalmente, voltava para casa, meu Pai esperava-me na sala, fossem uma, duas, quatro, seis da manhã, sentado num velho sofá e pedia-me para me sentar. E aí vinha a pergunta de sempre: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. Eu sorria (dos copos, de não saber a resposta?) e ia-me deitar, com um ar idiota e superior de quem julgava que tinha nas mãos não só o seu destino como o do Mundo.
Dias e dias, noites e noites, tempos e tempos passaram, turbilhões de tudo e nada passaram também e sempre a mesma frase: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. E eu sorria, outra vez, sempre.
Até que houve um dia em que “A Frase” mudou – passou a ser “Desisto. Pelos vistos, já não consigo fazer nada de ti. Felizmente não falta muito para que vás para a tropa e, aí sim, farão de ti um homem”.
(Parêntesis: Na altura havia a guerra colonial, África, milhares de mortos e estropiados, mas o medo, o desespero e a angústia passavam ao terceiro copo - ou seria ao décimo, não me consigo lembrar...).
Até que fiz dezoito anos, dei o nome, e acabei por receber um papel com a data dos meus exames físicos, para ver se seguia directo para General ou para o ainda mais prestigiante cargo de Descascador de Batatas.
Na véspera desses testes, juntei os amigos do costume e passámos a noite em claro – percorremos todos os sítios que havia a percorrer, percorremos o passado a correr, corremos o futuro com ar altivo e convencido de quem sabe como tudo se iria passar – copos a mais, medos a menos...
Obviamente, no dia seguinte (ou melhor, nas horas seguintes da noite) e nos testes de aptidão tropal, chumbei – juntamente comigo um maneta e um portador de uma carta do Instituto de Oncologia que, provavelmente, dizia “se faz favor deixem este gajo em paz nos últimos tempos da sua vida”.
Dali saído, retomei a noitada anterior acrescida de comemorações pelo chumbo e só cheguei a casa quando já o sol nascia e a manhã dançava nos telhados. Meu Pai, evidentemente, esperava-me. “Onde é que andaste este tempo todo?”
Respondi-lhe que tinha ido fazer os testes para a tropa e que tinha chumbado, o que fazia, na minha óptica, com que me safasse da guerra colonial (eventualmente, da morte) e, no que eu esperava que fosse a óptica dele, com que nunca me tornasse um homem.
Com lágrimas nos olhos, abraçou-me e disse: “Ainda bem, filho, ainda bem!”
PS - Esta história é uma adaptação pessoal de uma outra que ouvi contada pelo "Bruce, the Boss" num espectáculo ao vivo e que tinha como pano de fundo a guerra do Vietname.
5 Commenários:
Gostei muito desta história. Não sei se o parecendo tanto é mesmo verdadeira. Mas gostei do que é contado e de como é contado.
Um beijinho
By redonda, at 10 de setembro de 2006 às 23:37
Não é verdade, é apenas ficção - é que "já não sou do tempo" da guerra colobial"
Mas, como diz o "Inimigo Público", "se não aconteceu poderia ter acontecido"
By cuotidiano, at 11 de setembro de 2006 às 00:11
Aconteceu sim, de facto. Não contigo, meu cuotidiano, mas com alguém e bem conhecido....
beijos
By Anónimo, at 14 de setembro de 2006 às 11:16
Cuotidiano,não escreves desde o dia 10!!!! Não pode ser! Fazes-nos falta.
Beijocas
By Anónimo, at 14 de setembro de 2006 às 11:19
Pois, não poderia ser real, já que, quando dizes que tens agora a idade que o teu pai teria quando eras adolescente, estás a dizer que terás entre os 35 e os 40, mais coisa menos coisa. Não que o teu pai não o pudesse ser muito mais tarde, é claro, mas as probabilidades é que são poucas, ainda mais sendo tu o 1º filho, e, em princípio, único). Para teres andado na guerra, terias que ter entre os 55 e os 60, contas feitas por alto.
Este é o tipo de raciocínio (cálculos sobre especulação) a que convida o meu post, aliás (lol).
É uma forma meio tonta, esta, de te dizer "olá, boa noite!", né? :-)
By APC, at 16 de setembro de 2006 às 05:43
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