CUOTIDIANO

terça-feira, novembro 27, 2012

(Mais) Insónias



Chega a noite e custa estar vivo - quanto mais adormecer. E muito mais estar dormente, de dor, de vida. De mente.

Passar a noite com insónias é complicado – os sons dos carros pelas avenidas, os suspiros das nuvens que lentamente deslizam, os gritos das fábricas, as dores, as pessoas que se arrastam como se nem merecessem morrer, o vizinho que mija, o interruptor que, em plena autonomia quase insular, se liga e desliga várias vezes só para confirmar que está vivo, o sangue que circula à procura de destino mas que regressa sempre à casa partida, exacta e precisamente com o mesmo número de glóbulos, os segundos de agulha que se vão espetando nos minutos, nas horas, o recordar teu corpo em fotografias e, automaticamente, ouvir teu riso, lembrar tudo que é teu, tão teu e apenas teu,

Tudo me faz mal, me faz pior, me apaga, me desliga, me faz ninguém.   

E não consigo dormir, seria tão simples poisar a cabeça na almofada e adormecer, sorrindo, lembrando um cão da infância ou uma mão a vestir-me um casaco, ou um baloiço, ou um telhado ou, se nada mais houvesse para escolher, um vôo de um oitavo andar. Mas não.

Por momentos e por um estranho acaso, adormeço mas, à medida que me vou aproximando do chão, vou acordando. Até que, a meio milímetro do fim, acordo.

Meio milímetro depois, adormeço de novo. Mas no chão. Sem nuvens que me embalem.


 

 

segunda-feira, novembro 05, 2012

TÓPICOS (III) - A LARANJA



Ela chegou e ofereceu-lhe uma laranja. Trazia duas. Não tinha dinheiro.

Estavam na consulta, ele o professor doutor psiquiatra psicólogo psicanalista e afins, ela doente – já agora, pessoa e poucos afins mais.

Quando ela voltou para casa, cortou a laranja sobrante ao meio e partilhou-a com o marido. Não sorriram.

Quando ele voltou para casa, deu-a à empregada, que a juntou a todas as outras na fruteira. Nem sorriu.

Na semana seguinte, nova consulta. Ele, num esforço sobre-humano, ofereceu-lhe um sorriso. Trazia apenas um. Tinha dinheiro. Mas escolheu dar-lhe o sorriso. Por isso o tratamento estava completo. Estava, enfim, curado.

Voltaram cada um para sua casa. Definitivamente.

 

(Ele pela cura, ela pelo suicídio.)