CUOTIDIANO

quarta-feira, outubro 22, 2008

Fado da Escuridão

Foi naqueles dias estranhos, em que a humidade e a mágoa se colam ao corpo, que tudo aconteceu. Eu sei que eram as noites em que eu chorava saudades, os tempos em que me enlouquecias com a escuridão que transportavas; mas sei, também, que foi aí que nos amámos sem destino a ter nem direcção a tomar – que não a dos corpos, húmidos, pegajosos, com cheiro a monções e a desejos. Com cheiro a loucura. Nocturnos.

Foi nessas noites que enterrei todos os meus breves destinos e me destinei, apenas e só, a ti. E tu trazias a tua escuridão. E tu trazias as tuas tristezas destiladas, escorrendo pelos copos, pelas mãos, pelo olhar. E tu trazias tudo de ti, incluindo a escuridão. Mas eras tudo. Mas eras tu. Assim mesmo. Nua.

Então amei-te. Fiz amor contigo nas primeira e última levas da noite. Foi quando vi a tua escuridão feita vitrais, feita cores, feita solstício, feita escorrência de palavras doces.

Por isso tudo ainda amo a tua escuridão, os teus passos; amo até a tua ausência, enquanto espero pela noite - sabendo que, amanhã, serei eu a anoitecer, abraçando toda essa escuridão com um último, enorme, beijo dorido.

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sábado, outubro 18, 2008

Mensagem

Quando vi, no meu telemóvel, que a minha mensagem para ti havia ficado pendente, fiquei a pensar se não seria mais uma parva piadola do destino, do tipo “ah, e tal, agora és impotente, toma toma toma!”, ou algo assim. Mas não. A explicação era muitíssimo mais simples e óbvia - estavas na garagem do piso -3 a fazer amor com outro e, aí, não havia rede.

Fiquei extremamente aliviado.

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quarta-feira, outubro 15, 2008

Sílabas

Ela pôs a folha dentro da pastinha-plástica-e-transparente-para-colocar-folhas e entregou-a ao chefe. Como era extremamente eficaz, conseguiu, ao mesmo tempo, atender aquela-coisa-que-toca-e-quando-se-levanta-o-auscultador-conseguimos-falar-com-alguém-do-outro-lado. No entanto, como a chamada era destinada a alguém que não estava, de momento, no escritório, tomou nota do recado no seu conjunto-de-folhas-encadernadas-que-se-podem-arrancar-uma-a-uma, para mais tarde o entregar ao destinatário. A seguir, escreveu os ofícios no coiso-com-um-teclado-à-frente-e--um-visor-onde-as-coisas-aparecem, imprimiu-os depois na máquina-para-onde-se-enviam-os-textos-e-depois-aparecem-escritos e colocou-os, bem alinhados, na coisa-com-um-tampo-de-madeira-com-quatro-pernas-também-de-madeira.

No fim do seu dia de trabalho, regressou para aquele-sítio-onde-vivemos-com-um-tecto-e-várias-divisões e, como estava cansada, foi-se logo deitar. Mais tarde apareceu o marido, entusiasmado com aquela-coisa-que-às-vezes-se-levanta-e-aumenta-de-tamanho e abraçou-a. Ela disse que não lhe apetecia e voltou-se para o outro lado da coisa-horizontal-com-colchão-e-lençóis-e-cobertores-que-serve-para-dormir-e-por-vezes-também-para-debochices, adormecendo.

No dia seguinte, no emprego, quando uma colega lhe perguntou as horas, ela olhou para o seu relógio e respondeu-lhe que, infelizmente, não lhas podia dizer com exactidão, já que não estava certo por falta de sílabas.

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domingo, outubro 12, 2008

Perfeição

Ela sentou-se, à beira-mar, de mão dada com ele. Todos achavam que eles faziam o par perfeito. Olhavam o mar, vagaroso, beijando as rochas. A dada altura, ela levantou-se e escreveu, com um dedo apenas, o nome dele na areia, dentro de um enorme coração. Sorriu. Logo depois, veio uma onda e levou-o. Curiosamente, o nome dele continuou escrito na areia. Sorriu de novo e foi-se embora. Nada como meter uma cunha a Neptuno.

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sexta-feira, outubro 10, 2008

“Cumentário” de sexta (I) – O voto de hoje na AR

Hoje, na Assembleia da República (AR), votam-se os projectos de lei sobre a legalização dos casamentos homossexuais, projectos esses forçosamente condenados ao chumbo, já que a maioria da direita votará “não”, BE e PCP votarão "sim" e o PS votará “eu até era a favor mas por agora não me apetece”. A brilhante desculpa socialista é de que essa questão não foi sufragada pelos portugueses. Então mas... o aumento de impostos foi? Bom, devo ser eu que estou baralhado...

Em relação ao caso em apreço, confesso que me é indiferente se os homossexuais se casam ou não; limito-me, apenas, a estranhar que queiram aderir à instituição que mais infelicidade trouxe à Humanidade ao longo dos séculos - não contando com as repartições de finanças e os Delfins. Mas enfim, provavelmente será para animar as relações com um pouco de sal masoquista. Já agora, estranho mais ainda que os homossexuais não lutem pelo aumento de direitos da união de facto (bem mais importante, parece-me, que o casamento) onde, aqui em igualdade com os casais heterossexuais, sofrem uma real discriminação em relação ao casamento – por exemplo, no caso de morte de um, o outro fica de mãos a abanar...

Mas, na realidade, eu não queria escrever sobre a questão do casamento homossexual – apenas me serve de mote para o fazer sobre a liberdade de voto na AR. Comecemos pelo princípio.

Quando um deputado é eleito, é-o nominalmente; isto é, apesar de integrado numa lista partidária, ganha o seu próprio lugar, do qual só pode sair antes do fim da legislatura por opção própria - nomeadamente tornando-se deputado independente ou renunciando ao cargo -, não podendo o seu (ex-)partido “despedi-lo”. Ora o contra-senso é total quando existe algo, obviamente criado pelas direcções partidárias, chamado “disciplina de voto”. Ou seja, “queiras ou não queiras, votas como te mandarem votar”. Mas ainda mais fantástico (talvez, até, “extremamente giro”) é que, por vezes, as direcções, mui magnanimamente, dão (do verbo “dar”, sinónimo de “oferecer”, “presentear”...) liberdade de voto. Como é que é possível que um deputado, eleito pelo povo, só possa votar como quer e bem entende quando o chefe, generosamente, o presenteia com um maravilhoso instante de liberdade?!

E quando é que esses “momentos natalícios” ocorrem? Normalmente nas chamadas “questões de consciência”, como é, por exemplo, o caso do aborto. Então mas... não é sempre uma questão de consciência (bom, no caso do TGV Lisboa-Porto é mais uma questão de inconsciência), qualquer votação que seja? Ou os deputados têm de esquecer sempre a consciência para agradar ao chefe e garantir o lugar na legislatura seguinte? Então, se assim é, não seria então muito mais barato e eficaz só estarem os “donos das consciências” na Assembleia, cada um com direito a x votos? Mas... espera aí! Nem neste caso o PS achou que fosse um questão de consciência e impôs (aos tais “eleitos pelo povo”) a disciplina de voto, dando-se o caso caricato da maioria da bancada ser a favor e ir votar contra! Ou seja, parece que, actualmente, já nem numa questão de consciência. Bonito...

Comparemos, agora, esta absurda situação com o que recentemente se passou nos Estados Unidos em relação ao “Plano Paulson”, que prevê injectar 700 mil milhões de dólares nos mercados financeiros. A primeira versão do Plano, negociada e aceite pelo actual presidente, pelos dois candidatos à presidência e pelos representantes dos dois partidos (republicano e democrata), foi chumbada(!) pela Câmara dos Representantes, sendo que houve votos divididos nas duas bancadas - havendo, curiosamente, mais votos “não” na republicana. O Plano foi posteriormente revisto e aprovado à 2ª tentativa. Agora olhe-se com mais atenção: Era um acordo decisivo e importantíssimo - tratava-se de salvar a economia norte-americana (e, em larga medida, a de todo o Mundo) -, estava negociado e aceite pelos “chefes” mas... foi chumbado, já que “os eleitos pelo povo” não se deixaram instrumentalizar, não permitindo que outros fossem donos do seu voto e da sua consciência.

Curioso, não acham? É que, apesar de todos os defeitos e problemas do regime norte-americano, os representantes do povo prestam efectivamente contas aos seus representados e não, como por cá, àqueles pequeninos chefes que vão conspurcando os pilares mais básicos de uma democracia, como sejam as liberdades de opinião e de voto – já para não falar no pequeno pormenor do direito a transportar uma consciência limpa...

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sábado, outubro 04, 2008

O bilhete

A coberto da noite e de meia dúzia de imperiais, depois de anos a fio de hesitações, alguns avanços e muitos recuos, encheu-se de coragem e foi até casa dela, deixando-lhe um bilhete por debaixo da porta e fugindo de imediato. Tinha escrito

- Eu sei que um dia direi, sem correr o risco de te rires, “boa noite, meu amor”. Por isso vou esperando, esperando pelo dia em que serei eu o teu amor também.

No dia seguinte, por azar, o bilhete foi madrugadora e zelosamente aspirado por uma mãe dona-de-casa em fúria diabética.

Ainda hoje, sentada no alpendre, ela espera por um sinal dele nos diferentes brilhos e pulsares das estrelas, nos entrelaços das cores citadinas reflectidas nas nuvens, nos horóscopos da TV-Guia – ou, nem que seja, numa porra de um bilhete deixado por debaixo da porta.

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