CUOTIDIANO

terça-feira, abril 29, 2008

Odete, a vaquinha sem qualquer sentido existencial

- Sabes a Odete?
- Qual Odete, aquela vaquinha sem qualquer sentido existencial?
- Sim, essa. Ela...
- Desculpa, espera aí. Tens a certeza que é sobre a mesma Odete que falamos, aquela que é uma vaquinha sem qualquer sentido existencial?
- Tenho, garanto-te. Dizia eu que ela... mas... espera. Agora que falas nisso, digo-te, tens razão; é mesmo inacreditável... é que ela não tem qualquer sentido existencial.
- Olha, eu cá sempre disse isso. A princípio as pessoas não acreditavam em mim mas, a pouco e pouco, começaram a perceber que era mesmo assim – ela, de facto, não tem qualquer sentido existencial.
- É como dizes, chega a ser assustador. É que não tem nenhum, nenhum mesmo, nenhum sentido existencial. É espantoso!
- E digo-te ainda mais: há pessoas que têm varizes, outras cães... tudo bem! Mas agora não ter qualquer sentido existencial... valha-me Deus!
- Plenamente de acordo! Ainda ontem comentava isso com uma amiga minha. É que já vi de tudo nesta vida, incluindo as ceroulas do teu marido, mas uma coisa daquelas, nunca!
- Por acaso eu também já vi muita coisa, até os boxers rosa às flores com uma cobrita foleira que o teu namorado usa, mas como aquilo, não! Nunca vi nada assim – nenhum, mas nenhum, sentido existencial!
- E o teu marido, com aquelas manias do sexo anal na cozinha polvilhado com coentros e açafrão, assobiando cantigas de amigo feitas por D. Diniz em homenagem a um pinheiro pelo qual se havia apaixonado?! Eu a pensar que isso era o cúmulo e sai-me na rifa aquela Odete, sem qualquer sentido existencial! Caramba!
- Tens toda a razão. Mas olha, digo-te mais: quando o teu namorado trouxe o padeiro, o farmacêutico, dois cães vadios, uns suspensórios castanhos, um cozinheiro chinês, três candeeiros ucranianos e um pão de mafra para se juntarem a nós numa cama de água aos guinchos, eu pensei que isso era demais. Mas não! A falta de sentido existencial da Odete ultrapassa tudo! Chiça!
- E digo-te mais ainda: quando o teu marido se pôs todo nu em cima do meu armário aos gritos a imitar o Tarzan com uma fotografia tua a fazer de macaca na mão projectando slides do Egipto cheios de pirâmides tão provocadoramente descascadas ao ponto do próprio Nilo ter tido uma erecção e logo depois entrou no quarto o meu chihuahua cheio de gás e de “agás” e de pulgas e de língua de fora seguido pelo tipo que estava a arranjar o lavatório da cozinha vestido apenas com botas de borracha atestadas de chulé com pedigree de esturjão por sua vez perseguido pelos gritos apoplécticos de “quem é que me gamou a reforma?!” dados por uma cadeira de rodas com o avô de alguém acoplado e incorporado na engrenagem e depois disso ainda uma fulana da vida com umas mamas que chegam meia hora antes dela a qualquer lado quais trombetas histericamente anunciadoras de overdose de libido e cuja mãe fugiu à nascença do rossio com medo do tigre da malcata e também por respeito às aves canoras da ribeira formosa que só se reproduzem à trigésima terceira quarta-feira de cada ano isto caso não esteja muito barulho a temperatura do banho seja de 23,47 graus centígrados e não haja voyeurs da Quercus a masturbarem-se por perto, aí sim, aí eu achei que tinha chegado ao limite. Mas não, tens toda a razão - a falta de sentido existencial da Odete ultrapassa isso tudo. De caretas!
- E deixa que ainda te diga: Mas... espera lá... o que é que me querias dizer sobre a Odete?
- Qual Odete, aquela vaquinha que não tem qualquer sentido existencial?
- Sim, essa.
- Pediu-me para te mandar cumprimentos.
- Ah, obrigada.

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sexta-feira, abril 25, 2008

"Felor"


No meu primeiro ditado da primeira classe dei um erro – nunca o esqueci – na palavra “flor”, por mim então acrescida de um “e” (curiosamente, de “erro”) ficando, então, uma bela de uma “felor”. Lembro isto, provavelmente, por ser 25 de Abril e a versão lusíada de Che Guevara ser um cravo - com a suprema vantagem sobre a revolução cubana de haver sempre muitos, renováveis todos os dias, todos os anos, e nunca alguém ter conseguido clonar o Che sem ser em camisolas e posters de adolescentes retardados (como eu).

Passaram 34 anos desde 1974. Hoje não tenho casa - vivo debaixo dos pedaços ainda de pé de uma estranha ponte entre mim e os outros que eu próprio vou destruindo -, não tenho ossos comemorativos para virem daí pá, não conheço a quem oferecer um cravo e os cravos internéticos não têm cheiro, nem sequer a imberbe mas revolucionário suor militar. Mas isso que importa?

Importa é que passaram 34 anos desde 1974 e apesar de andarmos quase todos tesos podemos dizê-lo em público, vivemos em desesperança quase crónica, mas sabemos que temos o país de volta. Entretanto, construímos pontes para a europa e para o mundo, já não somos só postais ilustrados e provincianos, discutimos ideias e ideais e merdas do catano, tropeçamos e atrapalhamo-nos uns aos outros mas acabamos sempre por nos levantar, já não há a fome que havia, o silêncio que havia, o medo que havia, o obedientemente correcto que havia, os analfabetos agora são todos diplomados, já não há guerra nem aparecem mais estropiados nem loucos do que os estritamente necessários para o (des)equilíbrio do planeta e – o mais fantástico de tudo! - até o Rexina pôde voltar a ser Rexona.

Mas o que importa, mesmo, mesmo, é que é 25 de Abril! Por isso...

(mais um golo – eh lá, esta está quase a acabar...)

venham daí esses ossos, “felor”!

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quinta-feira, abril 24, 2008

Vícios

- Pára de beber, é todos os dias e todas as noites, que vício horrível!

Deixei de beber.

- Pára de fumar, é que é a toda a hora a mesma coisa, que vício nojento!

Deixei de fumar.

- Sempre a ver futebol na televisão, é todos os fins-de-semana sem parar, que raio de vício!

Deixei de ver futebol.

Curiosamente, depois de ter largado tão tenebrosos vícios e quando, supostamente, deveria andar por aí assobiando felicidade, passei a sentir-me miseravelmente infeliz. Mas há que encarar a realidade - de facto ela tinha razão, os vícios são coisas terríveis com que há que cortar. Resolvi, então, tomar uma decisão radical e acabar com o maior deles – obedecer à minha mulher. Assim fiz.

Agora sim, sou verdadeiramente feliz, fumando e bebendo o que quero e me apetece, enquanto vejo futebol na televisão. Já não era sem tempo livrar-me daquele vício. Chiça!

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sexta-feira, abril 18, 2008

Antunes

I

Quando o Antunes reparou que estava nu, no meio da rua, toda a gente a olhar,

(Antunes, que foste tu fazer, como é que aqui chegaste?)

deu-lhe, de repente, um clique e resolveu apenas aquecer, aquecer apenas ao sol tímido da Primavera, temperado por uma brisa com um estranho cheiro a limonada. Ou a infância.

Ali ficou, apenas e só a saborear aquele momento, por mais estranho que ele fosse, há que aproveitar, a vida passa demasiadamente depressa para que se consiga ter momentos.

(Antunes, até que nem é nada mau, bem bom mesmo, já devias ter feito isto há mais tempo, pá!)

Sorriu.

Quando um polícia chegou e lhe perguntou

- Mas que raio é que você julga que está a fazer?

dando-lhe com o cassetete antes de ouvir a resposta, Antunes limitou-se a sorrir, ansioso de séculos e esperas que estava por qualquer contacto humano. Por mais ignóbil que fosse.

(Antunes, tu também sangras, estás mesmo vivo, fixe!)

Sorriu de novo.

II

Mais que sorriu - deu uma gargalhada que se ouviu num raio de 50 anos!

O polícia anotou toda aquela estranheza no seu pequeno e preto e gasto caderno das ocorrências, levando-o para a esquadra de Santa Marta, para interrogatório.

Acabou condenado e perpetuamente preso à sua própria vida.

Nunca mais sorriu.

III

Quando o Antunes reparou que estava morto, no meio da rua, toda a gente a olhar,

(Antunes, que foste tu fazer, como é que aqui chegaste?)

deu-lhe, de repente, um clique e resolveu apenas continuar morto.

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sábado, abril 12, 2008

A minha paixão por ti vista de uma estranha janela

Quando as palavras ficaram paradas a olhar-te, percebi que não era só eu que me apaixonara por ti. Havia todo o resto do Mundo. E os castores.

Eras

(e hoje ainda serás, por certo)

linda de fazer parar o trânsito - incluindo o intestinal. De facto, até a própria Terra parava de rodar quando, a cada dia, amanhecia apenas e só por ti – o que fazia com que o tempo também parasse e a Swatch fosse quase à falência. Mas isso eram “peanuts”, comparado com o que a minha alma inchava, com o que o meu peito doía, com o que o meu corpo tremia. Com o quanto eu te desejava.

Passaram anos, muitos. Demais.

Hoje sobras-me nas canções lentas, no pôr-do-sol feito laranjada, no amanhecer ao som do anúncio da Nescafé, nos cascas dos primos dos camarões tigre do nosso primeiro encontro, nas imperiais saudades de ti, na poesia que me engasga e tusso mas que me ajuda a sobreviver, no tempo a mais que me vai faltando, faltando sempre, no ar sem ti que respiro.

Quando as palavras ficaram paradas a olhar-te, percebi que não era só eu que me apaixonara por ti. Havia todo o resto do Mundo, incluindo o silêncio.

(Por isso calo-me, enquanto o vento te assobia na estranha janela onde vou esperando. Por ti, não por Godot.)

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quarta-feira, abril 09, 2008

Ver ou não ver, eis a questão – a propósito do mais famoso vídeo escolar português

Depois de milhões de assassinados na China por um regime absolutamente nojento sem que ninguém se importasse muito, foi filmada a barbárie do exército chinês, incluindo esmagamento de pessoas com tanques, na Praça Tiananmen. Aí já toda a gente achou que aquilo era uma ditadura, cambada de malandros e tudo o mais. É claro que, como nunca mais se filmou “nada de especial” – então agora, com os Jogos Olímpicos à porta... -, afinal a China até que nem é tão má assim (tanto mais que lá até se fazem uns investimentos económicos fixes...).

Depois de 200 mil mortos sem que ninguém tenha visto e, consequentemente, sem que tivesse acontecido, foi filmado o ataque do exército indonésio no cemitério de Santa Cruz, em que morreram mais centena e meia de timorenses. Aí já o Mundo inteiro achou escandaloso e, como consequência, começou o “empurranço” para a saída da Indonésia de Timor.

Quando centenas de alunos levaram armas para a escola, outras centenas agrediram colegas, professores e funcionários mas tudo isto sem ter sido filmado, nada disso aconteceu. No entanto, após uma “luta de telemóvel” entre professora e aluna ter ido parar ao YouTube, afinal era o caos da autoridade, não havia respeito nenhum, estava tudo pelas horas da amargura. Então o procurador mexeu o rabo, o presidente indignou-se, as televisões rerererepetiram o vídeo até ao vómito, os professores acharam que a culpa era do ministério, o ministério achou que a culpa era dos pais e dos professores, os pais acharam que a culpa era dos professores e do ministério, e por aí fora em lindíssimos círculos de irresponsabilidade.


Mas será que não é óbvio que, na sociedade “fast-food” em que vivemos e nos deixamos viver, tudo isto era inevitável, não sendo este um caso isolado mas sim um exemplo representativo do que realmente se passa na nossa sociedade e, em particular, nas escolas portuguesas?

Um pequeno pormenor - os alunos são crianças e, em grande parte, mal formadas e mal educadas. Mas de quem é a culpa, afinal? Verdadeiramente, é de todos nós, “educadores” (independentemente de sermos pais ou professores ou ambos), que deixámos, por comodismo e inércia, que a nossa sociedade chegasse onde chegou. Crianças que não lêem e estudam por resumos, crianças que sentem um fosso cultural e de postura entre eles e os professores, crianças em que o carinho dos pais se mede no número de jogos para as consolas, crianças que acham que tudo podem fazer porque “ainda têm mais sete vidas”, crianças que só dialogam por “Messenger” abreviando palavras e sentimentos, crianças que passam mais tempo em frente a um computador que a um ser humano, crianças que não conseguem – e já nem querem - ter tempo (ou, no mínimo, tempo de qualidade) com as famílias, crianças que não criam laços afectivos porque não as ensinámos a criar, crianças em que o “bullying” é a sua grande forma de contacto físico umas com as outras, crianças tratadas nas escolas como “o coitadinho que não pode ser chamado à atenção” que se tem vindo a fomentar no ensino português, crianças cobaias de constantes reformas criadas por uns génios do ministério que nunca devem ter visto uma criança à frente, crianças “deixadas andar” nas escolas, em casa, na rua, na vida, essas crianças são os monstros que criámos e, consequentemente, os alunos que temos. Por nossa causa, os (maus) educadores cheios de (boas) teorias.

Repito - os alunos são só e apenas as crianças que nós criámos e que temos. Na escola, em casa, na rua. E, infelizmente para elas, com consequências para toda a sua vida.


Continuemos, então, a olhar para o lado (com o espírito "não vemos, logo não acontece") que, no futuro, quando as crianças de hoje forem os adultos de amanhã, o brilhante resultado estará ainda bem mais à vista. E no YouTube.

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segunda-feira, abril 07, 2008

Estranhas formas de vida (VI)

Quase todas as noites, desde que há mais de meio século se haviam casado, ela preparava-lhe uma bela posta de peixe cozido para o jantar. “Ele adora este prato!”

- Não te esqueças de pôr uma cebola na água da cozedura – recomendava-lhe ele. Ela assim o fazia. “Ele adora mesmo este prato!”

Mais anos, iguais, sempre iguais, se passaram.

Entretanto ele morreu. No funeral, a irmã dele sentou-se ao lado dela. Sem qualquer tema de conversa mais interessante e tendo, obrigatoriamente, que falar,

(nos funerais – toda a gente sabe - é fundamental estar sempre a falar, não parar nunca, não vá a Morte baralhar-se sobre quem é que é o morto)

acabaram por resvalar para a culinária, consequência da maior parte de suas vidas ter sido passada na cozinha.

Pela sua cunhada descobriu, então, que ele sempre detestara peixe cozido. A cebola era só para tentar disfarçar o sabor.

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quarta-feira, abril 02, 2008

Relatividades

No escritório.

(Bzzzzzzzzz)

- Sim?
- Xôdôtor, está aqui o sr. Abrantes para si. Mando entrar?
- Não; dê-lhe um tiro na nuca, por favor.
- Com certeza, xôdôtor.

(Pum, pum!)

(Bzzzzzzzzz)

- Madalena?
- Sim xôdôtor?
- Já viu o que fez?
- ...
- Eu disse UM tiro, não dois!
- Desculpe...
- Que não se repita!
- Sim xôdôtor.

Em casa, ao jantar.

- Nem sabes, hoje tive uma chatice no escritório.
- Que foi?
- Não é que me enganei a contar?! Mas deixa, também não foi assim lá muito importante, esquece. Mais batatas?

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