CUOTIDIANO

sexta-feira, julho 20, 2007

És linda

Baralhas-me. Baralhas-me completamente, confesso. Não sei se é do teu olhar infindo de tempo e água e sede, se do teu cabelo louro e lento e longo de sedas que ignoro, se de teu cheiro leve de pétala e mares e desejos, se do imaginário toque de tua pele no preciso instante em que quase cruzámos os dedos e os afectos e os beijos – ou, ainda mais lentamente, os olhares. Sim, acho que, pelo menos, cruzámos os olhares, não?

Confesso outra vez, confesso. Confesso que apenas sei que desespero sem saber para onde olhar, em cada vez que te lembro. Sem saber, sequer, como te lembrar. A não ser nas dores. Sim, és tão linda que dóis no olhar. (Sabes?)

E as palavras - de que servem hoje e amanhã e depois e seja quando for, quando não são escutadas por ninguém, nem sequer pelas falésias, também elas sempre esquecidas pelos ecos e tempestades e, tal como as palavras, secretamente sussurradas à margem de ti e de teu corpo de nuvem?

Já agora – então e os sonhos, os desejos, o imaginar-te para além, muito para além de nua, quase tu, quase sede, quase pão, quase água, quase olhar? Que farei com tudo isso?

(É que és linda, sabes? E baralhas-me).

Nunca te toquei, não te sei o sabor - provavelmente ignoras que eu, sequer, exista. Mas sei, garanto-te, juro-te que sei que és linda. E dóis no olhar (já te disse?)

É que és linda, sabes?

domingo, julho 15, 2007

O Comedor de Apelidos

Ele comia apelidos, toda a gente na cidade o sabia. Olhavam para ele com desconfiança, mudavam de passeio só para não o encarar, faziam comentários em surdina.

- Deve ser ainda pior que um assassino de cereais! - e continuavam caminho, bem para longe daquele perigo.

Era de tal forma ostracizado que, quando ia a um restaurante, os empregados deixavam o bloco de notas na mesa, esperando que ele escrevesse o seu pedido e com ele fizesse um avião de papel, que atiraria directamente para a cozinha.

- Sabe-se lá o que pode passar pela cabeça de um comedor de apelidos! Eu cá para mim já me bastou o que me aconteceu com o meu tio, só me faltava agora chegar a casa e chamar-me apenas “Zé” quando, até agora, sempre fui “Zé Silva” – comentava um empregado de mesa para outro que, resguardado atrás de um finíssimo cliente com 27 nomes, ia vigiando o perigoso comedor de apelidos.

Um dia, já farto de tamanha guetagem, resolveu partir para o deserto, numa viagem de retiro e procura espiritual dentro de si mesmo – e também porque tinha fantasias eróticas com camelos. Para a viagem levou dezenas de cantis com litros e litros de água e duas listas telefónicas, esses oásis de apelidos – só os “Santos” davam para 15 dias! Assim era certo que não morreria nem de sede nem de fome. Ou por falta de sexo, já que os camelos eram três.

Todos os dias avançava mais uns quilómetros deserto adentro, só parando à noite para umas horas de meditação. E também para umas.

Quando, ao fim de algum tempo, acabou a primeira lista, decidiu regressar, por forma a não ter problemas de mantimentos. No fim desse dia, enquanto se preparava para a sua costumeira meditação, resolveu comer qualquer coisita pouca, só um “Sá” ou coisa assim, nada de pesado como um “Menezes de Mello” ou um “Rainier de Sousa”, por forma a evitar qualquer perigo de congestão nocturna.

Foi buscar a segunda lista. Pânico total! Mal a viu desatou aos gritos, num tal ataque de histeria que os camelos, disfarçando-se de caracóis, resolveram esconder-se dentro das próprias bossas - então não é que se havia enganado e tinha levado, em vez de uma outra lista telefónica normal, umas “Páginas Amarelas”?! Estava tramado!

Sim, estava tramado, apelidos com açafrão davam-lhe problemas intestinais graves - numa primeira fase, gases com cheiro a pêssego, depois começaria a parir sucessivos “Brunos Nogueira” pelos ouvidos, dizendo piadas parvas e, numa fase final até aquele dia nunca atingida, morreria em lenta agonia quando um Alberto João Jardim, em ciclos infindáveis, poria só a cabeça de fora aos delicados urros “eu sou um Zulu, por isso estou no teu tu!” e recolheria ao aconchego intestinal. Era o fim. A humilhação suprema, um Alberto João Jardim dentro de si. E, ainda por cima, ali.

Era, de facto, o fim. Assim foi.


Assim é. Fim.

Etiquetas:

sexta-feira, julho 06, 2007

Resolvi demitir-me

Resolvi demitir-me. Anos e anos a fio a aturar um idiota daqueles já me tinham feito mossa suficiente, nomeadamente na bolsa (para além do que ele me roubou, os Psi são caríssimos – então os charros...), na vida sexual (impotência total, excepto com canários de penugem verde) e na vida pessoal (37 assassinatos e apenas 6 unhas cortadas, por estúpida e demente piedade das restantes).

O dito idiota é o típico Mr. empresarien à portuguesa. Ou seja: quando recebe muito gasta muito; quando recebe pouco, gasta muito mas não paga ordenados. Em qualquer dos casos, vive à grande e acha sempre que os outros são uns camelos e, ainda por cima, com direito, apenas, a meia bossa – já que ele é que é o rei dos camelos, artilhado de série com duas “boss”(as), nascido para ser endeusado.

Outras características fantásticas: usa títulos a que não tem direito (é Dr. apenas com o 9º ano incompleto), distribui lugares-comuns nos torneios de golfe (tipo “não somos nada...” num funeral), atira palpites sobre tudo o que não sabe, aos subornos chama amizade, troca de bruto carro para brutos carros ainda mais brutos sem pestanejar (para ele, mulher, filhos, amante...) e, mais fantástico ainda, consegue vomitar “a vida está difícil para todos” com ar sofredor, precisamente para cima dos camelos que, com salários em atraso, lhe vão pagando o condomínio privado, o colégio ainda mais privado dos filhos, as lições de ténis, as roupas à moda, os tacos de golfe e as férias em Miami.

Constatação final: A retrete do avião onde vai para os States é o único “ser” minimamente parecido com ele à face da Terra e ao ombro de Marte. Daí a empatia entre eles. E o cheiro semelhante. Aliás, agora percebo melhor o quão fantástica foi a invenção dos autoclismos – quando há muita trampa, puxa-se a alavanca e ela vai-se. Pelo menos para mim, foi-se.

(Sim, sou o desempregado mais feliz - e mais giro, já agora - de Portugal!)

Etiquetas:

Espelhos...

Quando a minha namorada imaginária me deixou, percebi que estava lixado. Nunca mais arranjaria alguém tão perfeito quanto ela - nem sequer fazia cocó!

Assim que soube disso (não do cocó, da fuga) e num ataque de fúria, a minha avó pôs-me fora de casa, já que se davam maravilhosamente, provavelmente consequência de ela já estar morta há dois anos. Definitivamente, estava lixado. Mas adiante.

Isto tudo para explicar o que ontem me aconteceu, ao passar em frente a um espelho. Como sempre faço, evitei olhar, já que este meu aspecto de sem-abrigo desmamado é demasiado angustiante – da última vez que tive coragem de o fazer, vi um flamingo com uma prótese auditiva (o que, pensando bem, até nem foi mau).

Desta vez não resisti. Fiz bem – não é que ali estava, em todo o seu esplendor e beleza, a minha namorada imaginária?! E convidava-me para entrar naquele seu mundo, e que iríamos ser felizes para sempre, e que teríamos três filhos, e que dois deles usariam, de certeza, desodorizante?

Sucumbido aos seus encantos, atirei-me espelho adentro – o que, evidentemente, fez com que se partisse todo, tendo ferido um flamingo surdo que passava despreocupadamente.

A minha avó bateu-me.

(Espelhos...)

Etiquetas: