CUOTIDIANO

sábado, setembro 30, 2006

A pedido, cinco características em palavras, frases, livros...

Há palavras que eu adoro, palavras vulgares ou inventadas, confesso que nem sei porque as adoro, mas há – namorada, fonte, luar, água, desejo, almamente, gesto, nome.

Há palavras que me são fetiche, apesar de roçar o absurdo o facto de eu gostar delas – frigorífico, mastodonte, armário, cócó.

Há palavras que me irritam – estereotipado, efectivamente, lambuzado, governo.

Há palavras que me põe em conflito interno – tia, casamento, mansão, mordomo.

Há palavras adúlteras, ou seja, aquelas em que há um sinónimo muitíssimo menos irritante – face (em vez de cara), obeso (em vez de gordo), plincaplum(em vez de bicicleta), idosa em vez de velha.


Depois há frases...

Que eu adoro – os morangos andam nus.

Que me são fetiche – os fuzileiros, tão engraçados, fazem os ninhos com mil cuidados.

Que me irritam – os pagamentos só serão efectuados a partir da sexta terça-feira do próximo ano.

Que me põem em conflito interno – gostava de jantar contigo mas apenas se fosses mulher.

Que me põem adúltero – és feio comó caraças; queres sexo, arranja outra!


Depois há livros...

Que eu adoro – “Uma coisa em forma de assim” (Alexandre O’Neill), “Poesia toda” (Herberto Hélder), “À boleia pela galáxia” (Douglas Adams), "Algumas das palavras" (Paul Eluard), “Três homens num bote” (J. K. Jerome).

Que me são fetiche – um prontuário, um dicionário, uma gramática.

Que me irritam – “Enamoramento e amor” que, estupidamente, li na adolescência e... não digo mais para não sujar ninguém com a proximidade de tanta intelectualice bacoca (Deus queira que me tenha enganado no título, que citei de cor...).

Que me põem em conflito interno – qualquer livro da ”Rebelo Light Pinto”, pela simples razão de que mais vale ler trampa que nada.

Quer me põem adúltero – "kamasutra", sem dúvida nenhuma, "kamasutra"! (volto daqui a meia-hora, pelo menos!).


PS – Como é evidente, não tenho espírito para participar na “corrente do conhecimento”, pois acho que estamos todos muito melhor assim, no conhecimento virtual, no desconhecimento real, nas interrogações – na verdade, só escrevi isto porque... sim! (boa razão, não?).
PPS - Em cima, nos livros que eu adoro, esqueci-me dos "Contos do Gin-Tonic", de Mário-Henrique Leiria. Por o considerar fundamental, resolvi fazer este acréscimo ao texto original.

Marta


- Estou?
- Está sim, boa noite, daqui fala a Marta, em que posso ajudar?
- Boa noite. Olhe, é assim: numa de improviso e loucura saudável, meti-me no carro com o meu marido e viemos para o Algarve. Mas, agora que chegámos ao quarto... avariou-se!
- Não se preocupe – nós vamos já tratar disso.
- Ah, sim? Então como?
- Bom, para já mandamos aí um psicólogo, um fisioterapeuta, um enólogo e um pato de loiça para resolver o problema.
- Um psicólogo, um fisioterapeuta e um pato de loiça ainda percebo, mas... um enólogo?? É que o meu marido não bebe!
- Por isso mesmo – talvez seja isso que lhe falta! Não podemos excluir qualquer hipótese.
- Ok, é pelo seguro, já percebi.
- Exactamente. E enquanto o seu marido não está funcional, enviamo-lhe um marido de substituição. Pode fazer-me uma descrição dele, para lhe enviar um similar?
- Concerteza. O meu marido é alto, elegante, olhos azuis, corpo de estátua grega, hálito a flores...
- Espere, espere! Desculpe, mas nós, na “Ok tanga-seguros”, estamos muito avisados contra fraudes – se a senhora estiver a prestar falsas declarações pode vir a ter graves problemas com a justiça, apesar de estarmos em Portugal.
- Tem razão, desculpe, estava a fantasiar. Na verdade é baixo, careca, gordo, arroto a cebola e pés de queijo. Mas, peço-lhe por tudo, Marta, por tudo o que tem de mais sagrado, peço-lhe, prefiro que me envie um operário de substituição acabadinho de fazer 57 horas extraordinárias numa mina de enxofre do que um similar.
- Ok, vou ver o que se pode fazer. Já que falamos com tanta sinceridade, deixe-me chamar-lhe à atenção para um aspecto – sou contra o determinismo simplista e contra os diversos equívocos de interpretação nas leituras ratzelianas.
- E...?
- Bom, para além disso, estamos na semana da promoção.
- Promoção? E de quê?
- Bom, é variável, mas este ano, concretamente, temos a promoção “Orgia Negra”.
- “Orgia Negra”, mas o que é isso?
- É simples...
- Espere, espere, antes de continuarmos; posso tratá-la por Ângela?
- Por Ângela?... Bom, pode ser, lá dizem que o cliente tem sempre razão, não é? Mas, já agora, pode dizer-me porquê?
- É que não a conheço de lado nenhum, não temos qualquer intimidade – e eu detesto tratar pelo nome próprio quem não me é próximo.
- Ok, está bem.
- Bom, continuando...
- Dizia eu que temos a promoção “Orgia Negra”, à base de uma tribo africana e de papagaios louros.
- Então, mas... e não pago mais por isso?
- É só mais um pouco, mas vale a pena – digo-lhe isto por experiência pessoal!
- Ok, está bem, então pode enviá-los. Mas... espere... o meu marido pergunta se pode ficar a assistir.
- Concerteza. Mas aí terá de comprar, pelo menos, uma pizza extra-cogumelos.
- Está bem, o meu marido come-a enquanto assiste. Já agora, vai demorar muito?
- Claro que não, já está tudo a caminho. Ah, lembro-me agora, também temos o “L-pacote”, em que eu também estou incluída.
- ...
- Estou?
- ...
- Estou?, atende cabra, daqui fala a Marta, a Marta, a famosa Marta, a gaja dos anúncios, ouviste?!
- ...
- ESTOU???!!!
- Desculpe Ângela, estava só a fazer uma última tentativa de resolver o problema manualmente.

sexta-feira, setembro 29, 2006

"E-mails", esses malucos!


Os “e-mails” têm, para quem os recebe, a grandiosa vantagem de que podem ser lidos quando se quiser, só se respondendo se se quiser e, caso se queira, quando se quiser ou for mais conveniente. No entanto, e na perspectiva de quem envia, essa vantagem pode tornar-se uma desvantagem, criando estados de ansiedade (“então, não me responde, deve ter ido sair com os seus amigos bêbedos...”), de desespero (“já passaram dois dias e...nada?!”) ou mesmo de “calimerismo” agudo, chegando este último caso a assumir proporções dramáticas quando a pessoa passa mesmo a usar uma casca de ovo na carola, o que pode ser extremamente desagradável e penalizador, nomeadamente quando se está de fato e gravata a ter uma entrevista para o emprego com que sempre se sonhou.

Bom, mas no outro dia um amigo meu deu-me a conhecer algo que pode satisfazer ambas as partes – o “e-mail” de resposta automática! Absolutamente fantástico! Com este sistema brilhante, escreva-se o que se escreva, a resposta vem imediata e sempre igual – já repararam no que isto pode trazer de segurança e estabilidade a uma relação?

Resolvi experimentar – o único problema é que, logo após a minha primeira experiência (algo de tão sensual como... não digo!), fiquei absolutamente viciado e, estranhamente (ou talvez não...), apaixonado pela “máquina”. Assim, estou há três semanas a mandar “e-mails” para um “respondedor” automático, já com os credores à porta, pois gastei todas as minhas economias em contas da Netcabo. Só a título de exemplo, aqui reproduzo a minha última conversa com essa maravilha tecnológica, já não sei, afinal, se divina, se diabólica.


Olá

Não resisti e resolvi escrever-te, pois morria de saudades da tua boa frase, sempre disponível e atenta, melhor que qualquer ombro ou joelho amigos.

"Estarei ausente durante todo este mês. Responderei assim que regressar".

É música, verdadeira música para mim. Traz-me confiança, segurança, sei sempre com o que posso contar, seja com os dedos, seja com máquina.

"Estarei ausente durante todo este mês. Responderei assim que regressar".

Lindo.

Sabes, ainda ontem, quando falava com o meu atendedor de chamadas, lhe disse "olha, conheci um 'e-mail' automático que te hei-de apresentar", ao que ele respondeu, arguto "já sei, tens um 'e-mail' automático para me apresentar!”, ao que eu perguntei "sim, tenho, mas como é que adivinhaste, meu malandro?", ao que ele respondeu "eu sei tudo, meu bom amigo". Bem, estes atendedores de chamadas de última geração são mesmo inteligentes - um pouco manhosos, é certo, mas realmente inteligentes.

Não te maço mais, era só para te sentir mais perto de mim, com a tua sinfonia de palavras.

"Estarei ausente durante todo este mês. Responderei assim que regressar".

Bom, vou então acabar a minha partida de xadrez com um bispo anglicano que recebi numa promoção do "Continente" e que, não sei bem porquê, enquanto eu te escrevia se pôs em trajes menores e aos saltos gritando que é uma pulga de circo. Queres ver que o leite estava estragado?! Da droga não é de certeza, que o meu gato continua púrpura e o pato de loiça permanece disfarçado de galo de Barcelos !

Saudades

Moi



PS – Se receber um “e-mail” destes, destrua o computador em cinco segundos- é para o seu próprio bem!

terça-feira, setembro 26, 2006

Lendo o “Público” (2006/09/25)

“Serviços Secretos americanos responsabilizam invasão do Iraque pelo aumento do terrorismo”

“Um relatório classificado produzido por 16 serviços secretos dos Estados Unidos [...] responsabiliza a guerra do Iraque pela expansão do radicalismo islâmico por todo o Mundo. O documento contraria uma série de declarações da Administração norte-americana das últimas semanas sobre os bons efeitos da invasão na luta global contra o terrorismo”.


Infelizmente, o palerma do Bush nunca atirou, em miúdo, uma pedra contra uma colmeia, senão teria aprendido alguma coisa e, se calhar, teria evitado esse disparate que foi a invasão do Iraque – disparate, enfim... para todos menos para as petrolíferas do Texas, que ficaram com a “parte de leão” dos contratos de exploração petrolífera com o actual Iraque; por coincidência (e só por isso, concerteza...) foram as entidades que mais contribuíram financeiramente para a eleição presidencial desse macaco.

O olho experimentado da autoridade

Um morango passou por mim, pedalando numa bicicleta. Não liguei. Um polícia de giro também reparou mas, com o seu olhar experimentado de autoridade, viu logo que ali havia algo de estranho. Mandou-o parar – era a matrícula que estava torta. Arranjaram-na e o morango seguiu viagem.

segunda-feira, setembro 25, 2006

O Filme


- Entra, fica à-vontade.

Entrei. Tirei o casaco meio encharcado pela irritante chuva que caía desde há três dias - nem que fosse só para justificar o aparecimento do Outono no calendário - e sentei-me no sofá da sala.

“Felizmente só mudou o tempo, não a vontade dela”, pensei camoneanamente, sorrindo por dentro. Nunca a tinha visto antes mas, curiosamente, conhecia-a mais ou menos bem, consequência das "conversas blogosféricas” que costumávamos manter. Enquanto ela não voltava com o “DVD” do filme que iríamos ver, comecei a fazer uma lista mental do que sabia dela, porque nunca se sabe quando se pode precisar desses conhecimentos:

- Nome? Confere!
- Estado Civil? Confere!
- Profissão? Confere!

Depois passei aos “factos discutíveis”:

- Afectos? Instintiva mas, ao mesmo tempo, medrosa.
- Beleza? Imensa, mas sem espalhafato.
- Inteligência? Demais para o meu pobre cérebro, mas que se lixe.
- Estilo? Uáu!

Estava eu nisto quando ela voltou com o dito “DVD”. Colocou-o no leitor, carregou no “Play” e...”espera aí!” – pedi-lhe eu, num tom meio histérico e infelizmente muito pouco viril, interrompendo a sequência de lançamento.

- Que foi? – perguntou-me ela preocupada, em tom amável.
- É que...
- Diz-me, vá, passa-se alguma coisa?
- Não, é só que... desculpa, mas ainda sou da "velha guarda", conhecemo-nos há tão pouco tempo e já estamos a ver um filme juntos? Não sei, faz-me confusão...

Ela compreendeu e concordou. Fizemos amor escaldante no sofá, no chão, num armário, em cima de uma mesa de cristal (que até fez um último esgar de felicidade quando se partiu), tudo isto sob o olhar reprovador do gato (dias depois, marcharia também).

Algumas horas mais tarde já havia, finalmente, ambiente para podermos ver um filme juntos.

- “Champagne?”, perguntou ela enquanto carregava novamente no “Play”.

domingo, setembro 24, 2006

O Discurso do Papa

Tomo o Papa por um homem inteligente; por isso, não sou daqueles que pensam que parte do discurso foi um lapso, que não queria dizer aquilo ou que foi mal interpretado – disse aquilo que queria dizer, do modo e na altura que achou melhor para o fazer.

Mas que disse o Papa que exaltou tanto os espíritos? Citou um diálogo medieval, em que o teólogo cristão S. Manuel II Paleólogo dizia a seu interlocutor muçulmano, entre outras afirmações, que o Islão só havia trazido desumanidade ao Mundo e impunha as suas ideias pela força, contrapondo que os cristãos não deixavam que a Fé dominasse a Razão pois tal seria contrário a Deus, já que “Deus não se poderia regozijar com o sangue”.

E o que é que os mais exaltados (nomeadamente os muçulmanos) retiraram do discurso? Que o Papa teria usado aquela afirmação quase que como sua, não a criticando nem sequer a enquadrando no seu próprio pensamento. De certo modo, é verdade – qualquer pessoa, quando cita outra, não enquadrando essa afirmação, leva os outros a concluir que está a usar as palavras de outrém para mais facilmente expressar o que, efectivamente, pensa. Exemplo: Se eu chegar a alguém e lhe disser “cuidado, quem vê caras não vê corações!” estou a expressar o meu aviso e a minha opinião usando palavras que não são minhas mas que ajudam a explicar o meu próprio pensamento.

E qual foi a explicação do Papa para considerar que tinha sido mal interpretado? Que nunca tinha dito que aquele era o seu pensamento (afirmação atrás refutada) e que, isso sim, tinha querido enaltecer o diálogo ecuménico, ou seja, o diálogo entre diferentes religiões. Ora este argumento também não colhe. Exemplo: Se eu disser “fui ter com fulano, disse-lhe que ele era intragável, ele respondeu-me que achava o mesmo de mim e, por isso, dei-lhe um pontapé”. O que é que ressalta desta frase, o diálogo ou a minha agressão?

Curiosamente, é preciso não esquecer que o Papa foi, durante anos a fio, o chefe da Congregação da Doutrina e da Fé, os herdeiros da (Santa!) Inquisição, Inquisição essa uma instituição da própria Igreja Católica, um verdadeiro paradigma da imposição da Fé pela violência! Então e as Cruzadas? Ainda sou do tempo em que ensinavam, desde a escola primária, que uma das razões para a existência das Cruzadas era a “expansão da fé cristã”! . Ja agora, relembre-se que, no Islão, não existe uma hierarquia como a Ocidental (uma Igreja com um supremo representante); existem, isso sim, vários “Islão”, pelo que as Cruzadas foram algo perfeitamente “institucional”. Bom, mas quanto à expansão da Fé pela violência, julgo que estamos falados. A título de curiosidade, refira-se que tivemos, aqui mesmo em Portugal, inúmeras situações de convivência pacífica com a cultura árabe, aquando da sua ocupação do Sul de Portugal.

Em suma, querer fazer crer que “nós somos bons e pensamos e os outros são maus e não pensam” não parece ser, no estado presente do Mundo, uma atitude muito inteligente e sensata, tanto mais se dita pelo chefe da Igreja Católica, ou seja, o representante máximo da referida religião e que, por ter esse mesmo estatuto, veio legitimar e exacerbar ainda mais o fundamentalismo islâmico - a prova disso foi o incendiar (até literal, pois foram incendiadas várias igrejas e até morta uma freira) da actual situação de conflito, nomeadamente nas zonas ocupadas pelos norte-americanos.

Então se a atitude não parece inteligente e denota falta de algum bom-senso e sendo o Papa um homem inteligente e (pelo menos, aparentemente) sensato, isto não pode significar outra coisa senão que o Papa pretende, realmente, uma clara divisão entre o mundo ocidental e o mundo árabe, tomando a Igreja Católica em geral e ele em particular um protagonismo que não têm desde... as Cruzadas!

Onde este caminho vai dar é que eu não sei...


PS - Ateu como sou, confesso que tenho medo de onde este caminho irá dar, pois não só não estou à espera de nenhum tipo de Céu como prefiro continuar vivo...

sábado, setembro 23, 2006

Lendo o “Público” (2006/09/23)

“MP iliba magistrados e acusa jornalistas de violarem ‘envelope 9’”

X, a troco de dinheiro ou de outra coisa qualquer, dá a Y um conjunto de informações ilegais, que as divulga publicamente. O Presidente da República exige uma investigação e conclusões urgentes. Mais de oito meses depois, e já com um novo Presidente, a justiça(?) portuguesa acusa Y por posse e divulgação de informação ilegal e conclui que X nunca existiu. Extraordinário!

Já agora, o ‘envelope 9’ terá acusado alguém de violação?

quarta-feira, setembro 20, 2006

Prudência

As abelhas não têm orelhas
As raias não usam saias
As alfaces não almoçam
Os tomates não se coçam
A roda ao rodar roda
O quadrado tem mais que um lado
A imagem não é a coisa
A ave às vezes poisa
As avestruzes abanam os cuzes
Um cotovelo não é o outro cotovelo


Diga uma evidência – evite a inteligência!

terça-feira, setembro 19, 2006

(Outros) Cheiros

O cheiro dela não era o cheiro dela. Eu explico. O cheiro dela já era o cheiro dela mesmo antes dela. Eu explico melhor. Quando subia as escadas de sua casa, elas cheiravam a uma mistura de cera com madeira velha e com aquela coisa estranha a que cheiravam todas as porteiras, uma espécie de desinfectante com aditivo de suor e esfregonas podres; em resumo, cheirava-me à proximidade dela, o que já acalmava um pouco a minha ansiedade adolescente.

Depois tocava à porta e, quando a abriam (a mãe, o pai...), todo o cheiro da casa dela, em que se misturavam mil perfumes e aromas diferentes com momentos, com ambientador em spray, com urina de gato, com sons, com a comida do vizinho - o sacana que deixava sempre a janela aberta quando fazia sardinhas assadas; enfim, tudo isso, toda aquela mistura familiar de cheiros me fazia estar mais perto dela, ainda mesmo sem ela.

E então ela surgia, como o nascer do dia - cheirava a manhãs de orvalho, cheirava a fresco, cheirava a ela. E o seu olhar que se aproximava cheirava a beijo e o seu beijo cheirava às estrelas que velam pelos amores puros e as estrelas que se soltavam do seu beijo cheiravam a desejos por expressar e os desejos emergiam da pele e cheiravam a mil cheiros de uma só vida com pouco tempo, com todo o tempo para viver – então o cheiro dela misturava-se com o meu e o meu entrelaçava-se, docemente, com o dela, até que partíamos juntos, à procura de todos os momentos, de todos os cheiros ainda por descobrir.

Eu bem dizia que o cheiro dela não era o cheiro dela

domingo, setembro 17, 2006

Cheiros

Estava eu deitado à espera, sempre à espera (de quê nem sabia bem), ruminando tudo e mais alguma coisa e mais algum tempo também quando, de repente, comecei a sentir um cheiro que me era familiar. E esse cheiro tornava-se cada vez mais intenso à medida que o ecoar dos passos se tornava mais forte e pesado. Aproximava-se, é isso, aproximava-se. E vinha na minha direcção. Então comecei a ficar agitado, lentamente a entrar em ebulição e a pensar: “Mas será, será mesmo? Era bom demais... mas... é isso! É esse o seu cheiro, é hoje, fixe!”. E não é que era mesmo aquele aguardado, desejado, sonhado, ansiosamente aguardado e desejado e sonhado corpo pelo qual eu suspirava há intermináveis séculos que já se começava a ver, ao longe ainda! Mas não havia qualquer dúvida. “É mesmo hoje, fixe!”.

Levaram-nos para a sala maior onde cobri o Zé 100 Bolas, o boi castrado cá do estábulo, tendo a recolha de esperma corrido às mil maravilhas, apesar do método do coito interrompido não ser o meu preferido. Só tenho pena é de não me terem dado um banho a seguir para me livrar do cheiro nojento com que fiquei.

quinta-feira, setembro 14, 2006

“Pais de cartão ‘substituem’ militares dos EUA em missões no Iraque e Afganistão”




“O programa começou no Maine e visa ajudar as famílias a ultrapassar as longas ausências dos soldados que servem no estrangeiro”, in “Publico” de 13/09/2006


À primeira vista, este programa parece algo insólito (apesar de, dos EUA, já nada ser de estranhar!); no entanto... um psicólogo clínico contactado pelo “Cuotidiano”, o Dr. Paulo Ito (ainda parente afastado do Sigesmundo), esclareceu que tal medida poderá ser, inclusive, muito vantajosa para as crianças e, mesmo as que não têm pais na guerra, deveriam também adoptar o seu “pai de cartão” ou “cartopai”, em linguagem mais técnica. Esclarece Paulo Ito:

“Numa primeira fase, ou seja, até que as crianças se apercebam que não é o pai real (o que demorará, pelas minhas contas, entre seis meses, na Papua Nova Guiné e três anos nos EUA), verificar-se-á uma enorme melhoria no ambiente familiar já que, entre outros:

- O acompanhamento paterno é muito superior pois, por exemplo, quando as crianças vão à aula de dança... lá vi o ‘cartopai’ com elas; vão à natação... cada vez que olham para a bancada lá está o “cartopai” embevecido, e assim sucessivamente;
- Existirá uma efectiva diminuição da taxa de violência familiar, já que o ‘cartopai’ não necessita de ocupar a casa-de-banho durante horas (não faz a barba, não faz cócó...), o que conduz normalmente a grandes discussões e, mais ainda do que isso, será extremamente dificil o ‘cartopai’ ingerir bebidas alcoólicas sem se desfazer todo, o que diminuirá o número de insultos e espancamentos;
- Os putos deixarão de ouvir ‘não!’ cada vez que queiram ir ao cinema às três da manhã com os seus amigos ‘dealers’ de coca;
- Haverá uma enorme poupança em bebidas e alimentação, o que permitirá um aumento do orçamento familiar, libertando dinheiro para todas as actividades familiares (passeios ao campo, lançamento de anões, aulas de canto gregoriano incluindo vómito...) e, não esqueçamos, sempre com acompanhamento paterno!

Numa segunda fase, ou seja, quando as crianças se apercebem que não é o pai real - e contrariamente ao que os leigos possam pensar - tal também poderá ser vantajoso, nomeadamente porque assim elas aprendem mais cedo a tratar do abandono a que irão ser vetadas quando o pai sair de casa com o divórcio, já que passaram pelo estado intermédio ausente/presente, estado esse que nós, técnicos especializados, chamamos de (e peço desculpa pelo jargão técnico). ’estado intermédio ausente/presente’.

Numa terceira fase, aquando do regresso do pai da guerra, aí sim, poderão começar a surgir alguns problemas, consequência do que poderemos chamar de ‘transfer afectivo-cartonal’, ou seja, e traduzindo para linguagem mais simples e acessível, ‘merda da grossa’. No entanto, não se preocupem, nessa altura cá estaremos nós, psicólogos clínicos, para ajudar.

Já agora, queria apenas referir que, na minha clínica, inaugurámos o pioneiro programa ‘Psicólogo de cartão’, à base de cenouras e de – e aqui a novidade – um psicólogo de cartão, que é tão inóquo quanto o real mas mais fácil de transportar, permitindo que o paciente se possa sentir também acompanhado em casa. Finalmente, para o seu cão temos o programa ‘Liberte o Freud que há em si’ (que traz como oferta uns óculos redondos de plástico para dar um ar profissional), o que permitirá que, em menos de dez sessões, o seu cão se possa divertir connosco, também fingindo que o trata. Ah, e também vendemos limpa-vidros para automóveis.”


Só me resta perguntar - sr. Ministro da Saúde,: esqueça os hospitais, esqueça os centros de saúde, observe e aprenda com o que há de mais evoluído e moderno no mundo e diga-nos: para quando em Portugal, para quando???

domingo, setembro 10, 2006

Ainda bem

Quando eu era pequeno costumava ir, de mão dada, com meu Pai ao Jardim Zoológico, ao Aquário Vasco da Gama, ao bailado, onde via minha Mãe dançar - e lhe apontava com uma lanterna que trazia de casa às escondidas para que os holofotes dela fossem maiores do que os das outras (bem feito!) - ao Planetário... e ele ia-me explicando tudo; o Mundo, o Universo, os sons, os medos, as vontades e, até (loucura das loucuras!), o girar dos planetas - para mim ele sabia mesmo tudo, era o meu herói, aquele que salvava a Humanidade da ignorância (qual Super-Homem, qual quê!).

Depois veio a adolescência e com ela as parvoíces do costume (por serem normais e habituais não deixam de ser o que são - ou estarei a dizer isto apenas porque tenho agora a idade que tinha meu Pai na altura?) disfarçadas de rebeldias e depois as rebaldarias e as noitadas e os copos e os desejos e as horas e os dias e as noites todos disfarçados de segundos e a pressa de viver arraçada de James Dean e a urgência de viver e a premência e a sede de estar vivo e tudo o mais e seja o que for desde que não fizesse sentido não tivesse objectivo e não apontasse para qualquer direcção que não fosse o que quer que fosse.

Quando, finalmente, voltava para casa, meu Pai esperava-me na sala, fossem uma, duas, quatro, seis da manhã, sentado num velho sofá e pedia-me para me sentar. E aí vinha a pergunta de sempre: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. Eu sorria (dos copos, de não saber a resposta?) e ia-me deitar, com um ar idiota e superior de quem julgava que tinha nas mãos não só o seu destino como o do Mundo.

Dias e dias, noites e noites, tempos e tempos passaram, turbilhões de tudo e nada passaram também e sempre a mesma frase: “O que raio é que julgas que estás a fazer da tua vida?”. E eu sorria, outra vez, sempre.

Até que houve um dia em que “A Frase” mudou – passou a ser “Desisto. Pelos vistos, já não consigo fazer nada de ti. Felizmente não falta muito para que vás para a tropa e, aí sim, farão de ti um homem”.

(Parêntesis: Na altura havia a guerra colonial, África, milhares de mortos e estropiados, mas o medo, o desespero e a angústia passavam ao terceiro copo - ou seria ao décimo, não me consigo lembrar...).

Até que fiz dezoito anos, dei o nome, e acabei por receber um papel com a data dos meus exames físicos, para ver se seguia directo para General ou para o ainda mais prestigiante cargo de Descascador de Batatas.

Na véspera desses testes, juntei os amigos do costume e passámos a noite em claro – percorremos todos os sítios que havia a percorrer, percorremos o passado a correr, corremos o futuro com ar altivo e convencido de quem sabe como tudo se iria passar – copos a mais, medos a menos...

Obviamente, no dia seguinte (ou melhor, nas horas seguintes da noite) e nos testes de aptidão tropal, chumbei – juntamente comigo um maneta e um portador de uma carta do Instituto de Oncologia que, provavelmente, dizia “se faz favor deixem este gajo em paz nos últimos tempos da sua vida”.

Dali saído, retomei a noitada anterior acrescida de comemorações pelo chumbo e só cheguei a casa quando já o sol nascia e a manhã dançava nos telhados. Meu Pai, evidentemente, esperava-me. “Onde é que andaste este tempo todo?”

Respondi-lhe que tinha ido fazer os testes para a tropa e que tinha chumbado, o que fazia, na minha óptica, com que me safasse da guerra colonial (eventualmente, da morte) e, no que eu esperava que fosse a óptica dele, com que nunca me tornasse um homem.

Com lágrimas nos olhos, abraçou-me e disse: “Ainda bem, filho, ainda bem!”

PS - Esta história é uma adaptação pessoal de uma outra que ouvi contada pelo "Bruce, the Boss" num espectáculo ao vivo e que tinha como pano de fundo a guerra do Vietname.

terça-feira, setembro 05, 2006

Lendo o “Público” (2006/09/04)

“Sexo seguro pode ser condicionado pelo preço dos preservativos”

“PSD formaliza proposta para pacto de regime na reforma da segurança social”


O que é que estas duas notícias têm em comum? Uma frase sintetiza-o: “porque é que eu não pensei nisto antes?” E porquê?

Na primeira porque, depois de contrair SIDA consequência de “sexo inseguro”, de certeza que não há quem não se lembre do preservativo que não usou (e que, afinal, até era barato se comparado com o preço a pagar pela sua não utilização); na segunda, porque o PSD, seguindo as boas tradições dos partidos políticos portugueses, só tem grandes ideias quando já não está no poder - por azar, quando lá estão “dá-lhes uma branca”...

domingo, setembro 03, 2006

Quando se viram (pela primeira e última vez)

Quando ela o viu pela primeira vez, sorriu.

Quando ele a viu, sentiu. Pela primeira vez, outra vez.

Os barcos (a entrar, a sair das entranhas da terra?) passavam, vindos e idos do mar, o Sol nascia (ou punha-se, ou ressuscitava?) criando o horizonte nas algas, a brisa ia (ou vinha, ou existia apenas?) pestanejando os olhares, o calor da manhã impunha-se lentamente, como o corpo dela - feito de ar quente e de palavras e imagens e desejos, desfeito e desprovido de tempo e preconceitos e tempo outra vez e modos verbais e adjectivos, feito, outra vez também, dos cheiros, das pausas, dos sonhos, das essências, da vida, das essências de vida. Melhor – o corpo dela era feito, excelsamente, de Vida.

Falaram de tudo – de nada mais que nada e pouco menos que tudo - sentiram o cheiro, o sabor da manhã que passava, dos pescadores que morriam dia a dia de vivos, da areia que não sujava porque aquecia e inundava a catarse do momento, do momento feito mar, feito sujo mas feito puro, de tudo ao contrário até que a manhã não chegasse, que o tempo nem sequer aconchegasse, que o desejo não partisse e não bastasse, que as palavras também não servissem para nada, que tudo não fosse mais que aquele momento, aquele desejo, aquela fonte, aquela fome, aqueles corpos, aquele suor e aquele desejo outra vez, pela primeira, pela última vez, até que o beijo que deram, sem dar por isso, não fosse mais que a vertigem da sede.

Não se casaram, não tiveram filhos e não foram felizes - a Vida impôs-se e, tanto ou tão pouco tempo depois, tudo morreu como nasceu - como um sorriso, com um sorriso.


(Como queres que diga que te amo, sem ser com lágrimas?)

No 75º Aniversário do Elefante Babar (com os gentis patrocínios “Air France” e “Chocapic”)

No dia em que fez 75 anos (e que foi a semana passada), o elefante Babar, após uma reforçada e bem regada refeição com filhos, netos, restante família e amigos, pediu silêncio. Quando verificou que já todos estavam voltados para si, comunicou em tom firme:

- Vou até à selva! E não vale a pena virem com aquelas histórias todas da idade, da incontinência e da obsessão por “Chocapic”, que nada me irá demover. Nada. São as minhas auto-bodas de diamante e vou ver se encontro alguns dos meus antigos amigos e colegas das histórias infantis, que isto de viver aburguesadamente em Paris já cheira mal. A propósito, peidei-me.

De facto, não valia a pena. Estava mesmo decidido. Apanhou o primeiro avião da “Air France” com destino a um qualquer país africano e, algumas horas depois, já estava a entrar na selva com ar altivo. Mas mal ali chegou...

- Úi, chiça, piquei-me! Será que aqui não há varredores de rua eficazes? Mal chego espeto logo a minha pobre pata?
- Eh pá, tu, sim tu, ó gordo, tira-me mas é a pata de cima – disse o porco-espinho meio esborrachado que se tentava libertar do peso de Babar.
- Desculpa, não te vi. Sabes, é da idade, já sou um pouco míope – respondeu Babar, um pouco embaraçado.
- Deixa lá, não faz mal – disse o porco-espinho, saindo apressadamente debaixo da pata levantada do elefante.
- Já agora – perguntou Babar – não viste por aqui nenhum dos meus antigos colegas das histórias infantis?
- Teus colegas? Histórias infantis? Estás maluco, ou quê? Mas de que raio estás tu a falar?
- Bom, sabes, já foi há algum tempo e...

Estava Babar em longas explicações ao seu novo amigo quando, cortando abruptamente a conversa, se ouviu um enorme estrondo que fez estremecer a própria selva – era o Noddy, que tinha espatifado mais um carro amarelo contra uma árvore. Correram até lá, tendo deparado com um cenário de horror, já que para além do carro todo destruído, o Orelhas Grandes estava no lugar do morto, fazendo jus ao nome. O Noddy, por sua vez, saíra ileso do acidente e ria-se demorada e sadicamente, num tom que até arrepiou a impenetrável pele de Babar.

- Ouve lá, ó boneco, apesar da cara de puto o facto é que tens quase sessenta anos, já tens idade para ter juízo; não me digas que continuas a conduzir sem carta como quando fazias na infância?
- “Ó boneco?” - respondeu o Noddy – será que és um maricão a querer engatar-me? É que já não és o primeiro que tenta e...
- Não consegue? – completou Babar.
- Não. Que consegue – gritou histericamente Noddy, enquanto se atirava, em voo picado, para os braços do elefante. Azar. Ele não tinha braços, apenas patas dianteiras e não o conseguiu agarrar, tendo Noddy caído de cabeça, desamparado no chão, o que lhe provocou morte imediata.

Pouco depois anoitecia e o frio começava a apertar. Por isso, e com os restos mortais do Noddy, os dois novos amigos aproveitaram para fazer uma bela fogueira, tendo-se sentado junto dela, tagarelando e rindo-se da última história, “Noddy e o seu primeiro salto mortal”. “O gajo devia julgar que ia num avião amarelo!”, foi a piada mais elaborada que conseguiram fazer. Entretanto e enquanto saboreavam, sob a forma de gargalhadas, a morte de Noddy.

- Olá, rapazes, não me reconhecem?

... E não é que era o rato Mickey, aquele perverso tarado sexual, louco por ratas “mins” (e cervejas “mins” e croissants “mins”...), acabado de sair duma clínica de desintoxicação?

- Olha quem é ele, aquele nojento pervertido - na juventude, nada lhe escapava (é que marchava tudo!); desde o cão até a um pateta amigo dele, era tudo, “ganda” ratão que este gajo era. Então e agora, quase aos oitenta anos, já na terceira (ou até quarta...) idade, o que te traz aqui? - perguntou Babar, babando-se de espanto (grande trocadilho!).
- Olha, acabo de sair da clínica TMN e disseram-me que, após o tratamento, o melhor era fazer longos passeios com ar puro. E que melhor sítio poderia haver do que este?
- Vieste de uma clínica TMN?
- Sim, é para a desintoxicação de “Tarados da Masturbação Nasal”. Como o resto já não funcionava, passava o tempo todo a assoar-me, até cheguei a fazer um filme pornográfico, não sei se viste, o “Narina Funda”.
- Estranho... em França existem clínicas TMN mas é para “Tarados por Mensagens Necrófilas”, gajos que passam o tempo todo a mandar mensagens de telemóvel do tipo “dava-te uma trombada de morte” ou “tens uma tromba de morrer a rir” ou, até, “vou ao Iraque mas volto para jantar”.
- Ouve lá, tenho mas é a impressão que te descuidaste outra vez. É que eu preciso de ar puro, que é o que aqui havia antes de teres chegado, meu elefante peidófilo. Sim, porque toda a gente sabe que és um peidófilo, escusas de disfarçar.
- Não sou não, tenho apenas um ligeiro problema de incontinência gasosa.
- Eh pá, isso são maneirismos de médicos franceses com queda para a mariquice. És um peidófilo e pronto.

Babar começava a ficar irritado. Ainda não havia comido “Chocapic”, tinha fome, o raio do drogado que não se calava, tinha frio, já só havia um braço e um pé do Noddy para atirar para a fogueira e o sacana do rato a dar-lhe com a peidofilia. Tomou uma decisão.

Já ardia o Mickey na fogueira, agora de novo viçosa e de labaredas de múltiplas cores, quando Babar perguntou ao porco-espinho:

- Ouve lá, onde é que há aqui uma “Loja de Conveniência”, ou um “Mini-Preço” ? É que estou cá com uma “traça”!
- “Loja de Conveniência”? “Mini-Preço”? Na selva? Ó meu amigo, isto aqui é o salve-se quem puder. Queres comer? Desenrasca-te! - respondeu o porco-espinho.
- Olha que chatice, lá em França era bem mais fácil do que isto. Como é que agora me vou salvar?

De repente... Plim! Do nada surge Tintin, o repórter, com Milou, seu jovial cão em cadeira-de-rodas e “Alzheimer”, nos seus lindos 77 anos de idade.

- Precisam de ajuda?
- Tu, aqui? - perguntou Babar, embasbacado (outro belo trocadilho!).
- Estou acampado ali ao fundo, com a restante equipa; sou o actor principal de um anúncio de bengalas electrónicas com purificador de ar incorporado (e que, adicionalmente, se forem engolidas com muita água, são boas para a diarreia) – sabes como é, tenho que fazer pela vida, já não há mundos submarinos para explorar, já foram à lua e mais longe ainda, já caiu o império soviético... ia fazer o quê? Ainda queriam mandar-me para o Afeganistão, mas com esta idade... olha, optei pela carreira comercial.
- Ouve lá, já que estás aí acampado, não me arranjas qualquer coisa para comer? É que estou completamente esfomeado!
- Ah, ah, ah. Deves estar mas é a gozar. Um balofo como tu a pedir comida a um lingrinhas como eu? Deves, deves...
- Bom, desculpa lá, eu não me quero chatear contigo. Se não te importas, se faz favor, vais até ao teu acampamento e trazes-me qualquer coisa para comer, está bem?
- Ah, ah, ah. Deves estar mas é a gozar. Um balofo como tu a pedir comida a um lingrinhas como eu? Deves, deves...
- Mas o que é que te aconteceu, dizes sempre o mesmo? Estás riscado ou quê?
- Ah, ah, ah. Deves estar mas é a gozar. Um balofo como tu a pedir comida a um lingrinhas como eu? Deves, deves...

Era demais. Poucos segundos depois, Tintin já estava na fogueira e Milou a grelhar, no que seria um belo prato de entrecosto.

Finda a refeição e já com a manhã a clarear, Babar palitou os dentes com o que restava do seu amigo porco-espinho, que havia marchado como sobremesa. Peidou-se, acordando toda a selva, levantou-se e regressou ao aeroporto onde, após esperar dois dias devido à greve, que havia em Paris, dos lavadores de espelhos de casas-de-banho (indispensáveis para uma segura aterragem de qualquer avião), lá arrancou de volta a casa em mais um voo da “Air France”, essa bela companhia, onde até servem “Chocapic” às refeições.

Chegado a Orly, um taxista argelino não o quis transportar sem pagar taxa de excesso de cheiro. Babar, claro, recusou-se, tendo seguido a pé para casa, praguejando contra a selva em que Paris se havia tornado durante a sua ausência.

sábado, setembro 02, 2006

Teoria de Evolução e Criacionismo - ou seria Darwin apenas um macaco infiltrado na raça humana com o objectivo de nos lixar a religiosidade?


in revista "The Hornet" em 1871 (reprodução)


Li no “Público” de ontem, sexta-feira 1 de Setembro de 2006, século XXI, sublinho, 2006, século XXI, que o Papa “Bento XVI vai discutir a teoria da evolução com antigos alunos, hoje e amanhã, num debate que os cientistas seguem com toda a atenção”. Li também, no mesmo artigo, a seguinte questão: “Irá o Papa rejeitar a teoria da evolução e aceitar o criacionismo?”.

No mesmo artigo, surgia também um gráfico extraído da revista Science (de 11 de Agosto, vim a descobrir à minha custa), em que se ilustrava o grau de aceitação pública da Teoria da Evolução em 34 países, em 2005. Era pedido aos entrevistados que dissessem se consideravam a teoria de Darwin verdadeira ou falsa, tendo os resultados sido apresentados por país, em ordem decrescente de aceitação, gráfico esse que seguidamente se reproduz.

À excepção dos Estados Unidos, quase que se pode, por simples observação do gráfico, dizer que o mesmo poderia representar, também, o grau de evolução dos países, em termos de qualidade de vida, um conceito que seria a “amálgama” de diversos factores como escolaridade, capacidade económica, mortalidade infantil, etc.

Por forma a ser mais objectivo (pois aquela afirmação seria fruto de uma mera “comparação a olho”), criei um gráfico com os mesmos países, colocados pela mesma ordem e fazendo uma correspondência de escalas, mas agora em termos do “Índice de Desenvolvimento Humano” (correspodente a 2002, não consegui arranjar mais recente, lamento...), índice esse que tem em conta o Produto Nacional Bruto per capita, o grau de escolaridade e a esperança de vida. Para além disso, e para facilitar a análise do mesmo, coloquei uma “linha de tendência”, conforme se pode observar seguidamente.


Se se comparar essa linha de tendência com o limite das “barras azuis” do gráfico inicial, ver-se-á que existe uma assinalável correspondência de andamento entre os dois.

Analisando mais “finamente”, verifica-se que alguns países se afastam ligeiramente “para menos” da linha de tendência, como é o caso, por exemplo, da República Checa, Eslovénia, Polónia (país de grandes tradições religiosas, acrescidas peo facto do penúltimo Papa ter sido polaco), Estónia e Hungria, países que tiveram um grande desenvolvimento, nomeadamente económico, a partir de 2004 com a entrada na União Europeia, o que, eventualmente, os terá feito, em 2005, aproximar da referida linha – recordo que os valores referem-se a 2002, contrariamente ao primeiro gráfico, referido a 2005 - e, do outro lado (“para mais”) e mais significativamente, os Estados Unidos; ou seja, ao que parece, neste caso, a capacidade económica e a escolaridade não trazem correspondência com o concordar com a Teoria da Evolução.

(Antes de prosseguir, um parêntesis – não estou com isto a querer dizer que criacionismo é igual a incultura ou, no limite, estupidez. De modo algum - respeito do mesmo modo pessoas religiosas como não religiosas, acredito piamente na liberdade individual de escolha de cada um. Este pequeno esclarecimento foi só para evitar mal-entendidos e preconceitos de raciocínio. Adiante perceber-se-á melhor.)

De facto, os Estados Unidos tendem sempre a ser um caso aparte, então desde que o inenarrável George W. Bush é presidente. Depois desse triste acontecimento para a Humanidade - reconheço que esse senhor é um dos principais obstáculos à aceitação da Teoria da Evolução, já que não há ninguém que não conheça um macaco mais inteligente que ele – depois disso, dizia eu, tem-se visto o aumento do número de estados americanos que tentam (e alguns conseguem) eliminar a Teoria da Evolução (mesmo considerando-a “teoria não provada”...) das escolas – ao que sei, por exemplo no Kansas, é mesmo proibido ensiná-la. Isto sim, é uma involução.

Refira-se que, nos Estados Unidos, se chegou ao requinte de existirem movimentos com crescente peso social que defendem a interpretação literal, sublinho, literal, da Bíblia, ou seja, por exemplo, que a Terra e a Vida foram criadas mesmo em seis dias. – mas haverá algum cristão minimamente culto que acredite nessas interpretações literais da Bíblia? Por este andar, qualquer dia, os Estados Unidos propõem que João Paulo II seja excomungado, pois “absolveu” (cerca de 400 anos depois, mas sempre é melhor tarde que nunca...) Galileu Galilei no processo inquisitorial que lhe foi na altura movido, devido à suprema heresia de demonstrar que a Terra é que gira em torno do Sol e não o inverso, conforme defendia a Igreja.

Como se pode comprovar no exemplo anterior (o caso de Galileu) e por muitos outros ao longo da História, normalmente a religião é o “lastro” da evolução, nomeadamente científica, da Humanidade – veja-se, actualmente, toda a polémica em torno da questão das células estaminais (*). – acabando por só aceitar os avanços da Ciência com séculos de atraso, “atrapalhando” pelo caminho. Como é evidente, não estou com isto a dizer que a Ciência não deve ser balizada – tem de haver algum controlo ético, nomeadamente quando se trata de questões de genética já que não é o mesmo a manipulação de células indiferenciadas para efeitos de tratamento de doenças (cancro, Alzheimer...) e a criação artificial do “homem- perfeito-de-olhos-azuis-e-cabelo-loiro”, como um bigode célebre queria.

A minha opinião sobre isto tudo é muito simples – à medida que a Ciência e o Conhecimento avançam, o espaço para a religião vai diminuindo, já que deixam de ser precisos conceitos “divinos” para explicar determinados acontecimentos e fenómenos. Assim, o verdadeiro problema está nas instituições religiosas que, não querendo “perder poder”, procuram manter, a todo o custo, o Conhecimento afastado das pessoas, rotulando-o de “imoral”, “ofensivo a Deus” e epípetos semelhantes.

Curiosamente, dentro desse poder também existe o poder económico – será que Jesus Cristo aceitaria a acumulação desmesurada de riqueza no Vaticano ou preferiria investir em meios de desenvolvimento para os mais desfavorecidos e destribuir dinheiro por quem precisa, acabando, por exemplo, com a fome em África? E a nível mais caseiro, tivesse Jesus Cristo dinheiro iria ele construir o novo Santuário de Fátima, ou gastaria o dinheiro com os mais necessitados? Enfim...

Conforme dizia atrás, o espaço religioso irá diminuindo e, na minha opinião, tendendo para o espaço interior de cada um, nomeadamente no apoio para vencer os nossos medos, angústias e dúvidas interiores – por exemplo, o medo da morte, se haverá .mais que uma vida... – e para a espiritualidade individual, seja ela partilhada colectivamente ou não.

Finalmente e citando a Bíblia, Jesus Cristo terá dito "Dai a Cesar o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt 22,21) – então e porque não se aplica este conceito à Igreja e à Ciência? Assim, e para terminar voltando ao tema que serviu de base para este texto, não acredito que o Papa Bento XVI tenha um assomo de involução e não siga o exemplo do seu antecessor, que tentou sempre ter uma relação o menos conflituosa possível com a Ciência.

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(*) A título de curiosidade, o ex-presidente Reagan era contra todos os estudos que implicassem qualquer manipulação de células, quaisquer que elas fossem mas, algum tempo depois de ter ficado com Alzheimer, veio à Imprensa sua mulher, Nancy, defendendo o avanço destes estudos. Quando nos toca...



PS – Peço desculpa por toda esta seriedade, a parvoíce regressa dentro de momentos.