CUOTIDIANO

sábado, janeiro 26, 2008

Estranhas formas de vida (V)

... E o alarme que ouvia no pesadelo, afinal, não era mais que o despertador da mesa de cabeceira que não parava de tocar. Desligou-o. Respirou fundo. Acalmou-se. Depois levantou-se, tomou banho, arranjou-se, comeu qualquer coisa e saiu de casa apressadamente.

- Bom dia – disse-lhe, em tom fino e sofisticado, o pinguim mais gordo de todos, quando se cruzaram no portão sul, à entrada da escola, onde iria dar as mesmas aulas de sempre. Sim, de facto tudo estava completamente normal. “Não há nada como o casamento”, pensou.

Por essa altura o marido chegava a casa, após mais uma noite alucinada com a sua amante brasileira. “Não há nada como o casamento”, pensou, enquanto comia o pequeno-almoço que a mulher lhe deixara já pronto.

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sexta-feira, janeiro 25, 2008

Estranhas formas de vida (IV)

Como sempre fazia, entrou, sorrindo, pelo portão sul do sagrado coração de qualquer coisa para dar aulas. Só que, desta vez, à sua passagem o alarme disparou. Por toda a escola, pelos quarteirões em volta, por todo o lado se ouvia aquele barulho estridente e ensurdecedor. Alunos, professores, cães, a direcção em peso - composta exclusivamente por freiras de uma qualquer espécie em vias de extinção -, todos apareceram a correr para ver o que se passava.

- Então mas o que é que julga que está a fazer?! – perguntou-lhe agressivamente um dos pinguins directivos, ainda arfando da correria.

- Então... venho dar aulas, evidentemente.

- Ai isso é que não vai. Está é despedida!

- O quê?! A que propósito?

- Não me diga que não está a ouvir?! Fez disparar o alarme para divorciadas, ainda não percebeu?! Nós aqui não queremos gente da sua laia! Rua, já!


Acordou em sobressalto, com suores frios, respiração ofegante. Que pesadelo! Felizmente havia casado de novo e, sendo a terceira vez, por certo iria durar para sempre - é que, como em alguns estados norte-americanos, geralmente a terceira condenação é perpétua.

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quarta-feira, janeiro 23, 2008

Estranhas formas de vida (III)

Como em todas as noites de todos os anos, ela trouxe-lhe a sopa à mesa. À primeira colherada ele queimou-se, largando bruscamente a colher e um grito.

- Chiça, está a ferver! Mas é todos os dias a mesma coisa! Fazes de propósito, de certeza! Chiça...

- Desculpa – disse-lhe ela.

Pegou de novo na sopa e levou-a para arrefecer na varanda. Sorriu. Ainda conseguia fazer com que houvesse diálogo entre eles.

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segunda-feira, janeiro 21, 2008

Estranhas formas de vida (II)

Cozinha. Jantavam - como sempre - em casa, partilhando as despesas e a solidão. O único diálogo que se ouvia era entre o bater sincopado do pêndulo do relógio da sala e o tilintar avulso dos talheres. Jantaram.

Sala. Após duas horas de silêncio televisivo ela, sem saber porquê, lembrou-se de uma frase de um filme que havia visto na adolescência. Disse-a.

- O esperma cheira a peixe podre.

Depois disso - era inevitável - ele tinha de dizer, fazer alguma coisa. Fez. Pegou no comando e mudou de canal.

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sexta-feira, janeiro 18, 2008

Estranhas formas de vida (I)

Quando ele a acordou com um enorme peido na cara, ela deduziu que, afinal, ele não a ignorava completamente. Em consequência, passou todo o dia com um enorme sorriso na cara.

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sábado, janeiro 12, 2008

O meu estudo sobre o novo aeroporto de Lisboa (já que todo o português tem direito a fazer um, aproveito)

1. Os factos (retirados do “Sumário Executivo” do estudo do LNEC, à excepção do último)

- Há já quase quarenta anos que são realizadas análises técnicas sobre possíveis localizações alternativas para a construção de um novo aeroporto internacional para Lisboa;

- Este processo teve início com a criação, em 1969, do Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa (GNAL);

- A localização na zona do Campo de Tiro de Alcochete (CTA) nunca foi considerada como possibilidade alternativa na Margem Sul, atendendo, presumivelmente ("bold" meu), ao facto de ter uma utilização restrita a fins militares;

- No final de 2005, o Governo, tendo em conta os referidos estudos, anunciou a decisão de avançar com a construção do NAL na opção de localização na zona da Ota;

- Em resultado da apresentação ao Governo, pela Confederação da Industria Portuguesa (CIP), de um novo estudo, o Governo entendeu que esta hipótese de localização do NAL que não fora estudada anteriormente, situada na zona do Campo de Tiro de Alcochete (CTA), deveria merecer uma apreciação mais aprofundada, de forma a comprovar a sua viabilidade e, se tal se confirmasse, a compará-la, do ponto de vista técnico, com a opção anteriormente tomada;

- Em 12 de Junho de 2007, o Governo decidiu mandatar o LNEC para, “no âmbito da respectiva liberdade de investigação e autonomia técnica, elaborar um Estudo que proceda a uma análise técnica comparada das alternativas de localização do Novo Aeroporto de Lisboa, na zona da Ota e na Zona do Campo de Tiro de Alcochete”;

- Em 30 de Julho de 2007, o Ministério da Defesa Nacional informou o LNEC que, quanto à possibilidade da eventual localização do NAL na zona do CTA, “…se o superior interesse nacional assim o determinar, o Campo de Tiro de Alcochete (CTA) poderá ser utilizado para implantação”.

- Em 9 de Janeiro de 2008, ao fim da tarde/noite, o relatório do LNEC é entregue ao Governo e, no dia seguinte às duas da tarde, José Sócrates comunica a sua decisão ao País.


2. A mesma história mas contada em coisas giras

Num país cheio de sol e à beira-mar plantado, depois de 40 anos de estudos e especialistas e notáveis e técnicos e comissões e milhões e milhões e milhões gastos e tirados do bolso do povão, surgiu uma confederação patronal que fez, em 6 meses, um estudo que apontava para uma localização que, de tão evidente, nunca havia sido estudada. Essa localização baseava-se na simples premissa de “porque é que os tropas não vão dar tirinhos para outro sítio?”

Três meses depois, o LNEC conclui que sim, sempre era melhor aí. Menos de um dia sobre a recepção do parecer do Laboratório, o Governo, após (sem qualquer dúvida) ter lido atentamente as cerca de 400 páginas do relatório, condensadas em 5,41 Mb de informação digital (sendo que, só o “Sumário Executivo”, tem 20 páginas) e reflectido devida e ponderadamente sobre o assunto, decide que, realmente, os tropas poderiam ir dar tirinhos para outro sítio, já que ali ficaria o novo aeroporto - aeroporto esse cujo custo, somado com o das obras consequentes e envolventes, irá ser de cerca de seis(!) pontes Vasco da Gama. Daí, evidentemente, aquelas intermináveis horas de ponderação governamental.

3. Algumas perguntas que me fazem comichão

- Porque é que nenhum dos super-hiper-mega especialistas em navegação aérea e afins, durante 40 anos, se lembrou de estudar Alcochete? Tinham instruções políticas para o não fazer ou foram, apenas, incompetentes? Já agora, não é curioso que o LNEC diga que “a localização na zona do Campo de Tiro de Alcochete (CTA) nunca foi considerada como possibilidade alternativa na Margem Sul, atendendo, presumivelmente (mais uma vez, "bold" meu), ao facto de ter uma utilização restrita a fins militares”? Então “presume-se” e pronto, fica assim? E ninguém é responsável pela “presunção” e pelos desperdícios de tempo e dinheiro provocados ao País? Será, então, que poderemos presumir que, sem a presunção, presumivelmente já teríamos aeroporto há 30 anos?

- Na sequência da anterior, teriam sido os tropas que inicialmente não deixavam e depois passaram a deixar que se lhes fosse ocupado o recreio? Então, sendo assim, como é que se explica não só a força que tinham (já que, entretanto, passaram inúmeros governos de diversas cores e Alcochete nunca foi hipótese) como, também, a sua mudança de posição?

- Como é possível que 40 anos de estudos sejam facilmente substituídos por um de 6 meses? Estes novos especialistas (pagos por alguém não neutro e com interesses económicos no assunto, relembro) serão assim tão bons e os anteriores assim tão maus?

- Que interesses havia e há, ao nível de terrenos, numa zona e outra?

- Porque é que o Governo só mandou o LNEC comparar Ota com Alcochete e não pediu, também, para estudar soluções que incluam a Portela (+1, +2, +0, o que for)?

- Como é que uma decisão que deveria ser técnica se tornou num combate político?

- Como é que, em menos de um dia, o governo consegue decidir? Já estaria decidido?


4. Conclusão

Que país de opereta!

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domingo, janeiro 06, 2008

Desemprego

Corto as cebolas e dou mais um golo na última cervejola – quando é que ela vem?

Atiro-as para o tacho – mas já passa das sete!

Azeite, sal, aí vão. Refogo. Corto o pacote de arroz. Aí está... chiça, cortei-me! – sete e dez.

Deito o arroz para o tacho. Mexo, já com o dedo entrapado. Que se passará? – sete e vinte.

A porta bate. Olá e beijo e então tudo bem e estou tão cansada.

Deito a água e espero que ferva. Vais dar banho aos miúdos?

Frito bifes.

Espero.

(Dantes, a esta hora, saía da fábrica. Bebia mines. Depois chegava e protestava com o jantar. Agora sujeito-me a isto. “Dono de casa”, que mal me soa. E pôr a mesa? Deverei fazê-lo? Será humilhação?)

Trouxeste as cervejas? Não há dinheiro para isso? Ok, tudo bem, a televisão ainda resiste.

Para a mesa e mãos lavadas, todos! Não gostas? Não prestam? E sabes a fome que por aí há? O quê, não posso dizer nada porque não fui eu que os comprei?

Engulo.

Acabaram? Podem levantar-se. Sim, a Mãe deixa...

Até logo, volto tarde.

É manhã. Oiço-os sair.

Tento adormecer outra vez - antes que soe o apito da fábrica!

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