CUOTIDIANO

terça-feira, maio 18, 2010

Cavaco muito Homo (Sapiens, claro!)

Ontem, 17 de Maio, Dia Mundial contra a Homofobia, Cavaco Silva comunicou ao país que, apesar de contrariado, chateado, furioso, a deitar fumo, danado, mas que chatice, ai meu Deus que parto este estabelecimento todo, havia promulgado a lei do casamento homossexual. Enquanto discursava - e conforme se pode constatar pela foto acima (extraída do “Público” de hoje) -, atrás dele e numa zona mais recatada do seu Palácio, dois meninos nus (seriam anjinhos?) brincavam felizes e abraçados, praticando a dança do varão no candeeiro, sob os holofotes de uma lâmpada de 40W e de - sem Cavaco dar por isso - 10 milhões de portugueses.

Vícios privados, públicas virtudes, não é Sr. Presidente? Que momento bonito…

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quarta-feira, maio 12, 2010

Ai eu


Ai eu que vindo da janela só me percorrem carros e guinchos e nem sequer o pássaro sai da gaiola poisada na sala pira-te estúpido ai eu que ontem ouvia os cheiros das giestas e interpretava os desejos dos pinheiros o bater das asas até das partículas de luz que há muito haviam atravessado oceanos ai eu que aqui estou de memórias mortas e de mulher no outro mundo (que o tempo dói demais sem ser na terra) sabendo que os netos me apaparicam como demente de vida apartada ai eu que sei que meu filho para aqui me trouxe porque se preocupava comigo sem saber que me matava na lentidão dos escapes e dos horizontes tremidos ai eu que dantes passeava até à estação de tratamento enganado como as gaivotas pelo lago lago de merda só depois soube o que era mas antes das gaivotas descobrirem essas estúpidas ai eu que navego sem saber e sem vista quase sem sabor dos minutos e que devoro a ansiedade do pássaro que se extingue à porta da gaiola Olha vem aí o meu neto e o pássaro pousou-lhe na mão (será que sorriu?) e voltou para a gaiola mas porque carga d’ água não me deixaram apodrecer ao lado dela que tanto amei e tiveram tão estupidamente de me salvar? Ai eu que me custa mais subir as escadas deste monstro de betão e de indiferença do que palmilhar quilómetros entre os montes e as enseadas e as gotas de chuva e de suor dos campos ai eu que já fui dono e rei do pôr-do-sol eu que lhe ordenei “pára!” e ele parou eu que lhe gritei “continua!” e ele ressuscitou ai eu que já fui pessoa e não restos obedientes e angustiados ai eu que sobrevivo sem nada quando o tempo se torna tão lento que quase nada me sobrevive ai eu que afinal morri mas falo e peço um pouco de pudim ah não pode ser por causa do colesterol atenção pai que está alto como se o colesterol tivesse capacidade para me matar e eu não estivesse ao invés a morrer de inveja do pássaro que preso ainda canta a morrer de inveja até da rua que é imóvel mas ao menos guincha do ar que entra nos pulmões mais depressa do que um Ferrari pregando sustos às veias ai eu que era alguém e que agora nem consigo viver mas sobrevivo vendo o sacana do pássaro e quanto o invejo e admiro ai eu que (Ó pai tire daí as mãos que essas bolachas fazem-lhe mal) trago aberta a janela do peito (Ó pai já lhe disse afaste-se da janela que é perigoso) e a janela janela aberta que grita por mim e eu parado e ai eu parado e ai eu

Voei. O tempo dói demais sem ser na terra.

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sexta-feira, maio 07, 2010

O Macaco de Rabo Azul Amarelo Cinzento de Cor Indecifrável Que Apenas

Foi quando ela se sentou ao colo do meu olhar que eu tentei fugir. Para longe, longe mesmo. No fundo, partir até ao fundo dos seus rubros glóbulos brancos. (Mais tarde, em paralisia dos sentidos, olhei-a como quem olha o passar do tempo. Flutuaria?)

Passou tempo, passou todo o tempo que resta e ela fica, permanece. Fria e indiferente ao que quer que seja que lhe digam. Mesmo que alguém lhe dirigisse um hálito de nuvem ela responderia com um sonho distorcido por aranhas. E fica, permanece. De saudades desfeitas como quem trucida os momentos para os transformar em negações de qualquer contacto com os dedos, com a vida, com os inúmeros minutos que compõe um segundo preenchido desse seu corpo. Curiosamente, é o mesmo – seu, apenas seu - corpo que permanece como fonte, como banho sagrado, como renascer suave dos sorrisos do passado. Que lhe terá acontecido, que dor transportará?

A verdade é que passa o tempo, tempo passa sem passado - só não pára porque a brisa o transporta. Sim, na brisa, na brisa transportamos todos os tempos sem momentos para os enterrarmos – na esperança que floresçam como sangue de árvores extintas, como falésias de beijos pesados de enorme leveza etérea. Que tempo ela terá?

Entretanto, o macaco de rabo azul amarelo cinzento de cor indecifrável que apenas quer fugir, resolveu declarar-se representante legítimo e absurdo da jaula enorme e circunspecta que é a nossa vida – sempre reduzida a frases, palavras, sílabas, sons, grunhidos extemporâneos e inúteis de alma perdida por entre mares errantes à procura de um novo rótulo - e gritou. O quê?

Mas hoje, de facto, eu só queria que te sentasses ao meu colo, onde os séculos duram lágrimas, onde o tempo trespassa os ombros, onde a saudade morreu de conjuntivite e de uma cornada, e que trocássemos as palavras por senhas de racionamento de sais de banho e licores, por vapores de metropolitano e Marilyns de olhares bandarilheiros e num abraço partíssemos – é que, ao chegar Lá, sei que renasceremos por entre veredas, fontanários e lama, como um imbondeiro farto de contar os dias, como espinhos de cactos mortos. Por outras palavras: troquemos os dias, tranquemos as almas e partamos - até que a Morte nos faça viver juntos para sempre.

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