Quando ela partiu
Um dia ela
partiu sem deixar rasto, o que me deixou sozinho com a sempre difícil tarefa
das partilhas. Decidi ficar com a saudade, a sede e o sabor dos breves momentos
juntos - lábios e mãos incluídos -, deixando-lhe o dia-a-dia, o abraço em
espera e o instante exacto e absurdamente preciso da nossa morte. Mas tudo isso
não me fazia esquecê-la… onde estaria?
Nesse dia à
noite, no meu quarto vazio até de mim, lembrei-a. Não conseguia dormir, sofro
de insónias cómicas, cósmicas ou lá o que é que o meu médico disse. Fui até à
janela. A noite baralhava estrelas pelas galáxias, aviões sulcavam traços de
realidade a pincel e sons, casais desligavam luzes ligando abraços em
simultâneo, ouvia-se a brisa beijando as folhas das árvores que, aos pares, brincavam
ao homem-estátua, carros faziam piões no asfalto só para o ouvir gritar – ou
seja, havia vida que se espalhava como epidemia na noite, desde os locais mais
longínquos do espaço até aos corações mais longínquos do meu bairro. E eu ali,
à espera, mais uma vez adiando-me para outro século, para outra vida que não
teria. Mas tudo isso não me fazia esquecê-la… onde estaria?
De manhã
acordei só segundos depois de me levantar, tal era a pressa de ter notícias
dela. Percorri telemóveis, mails, caixa de correio, porteiro, até me revistei
por dentro à procura de um simples recado que fosse, um bilhete, um canhoto do
cinema onde se sentisse a presença dela, do seu sabonete de alma. Nada. Liguei
a televisão. Apático ouvi as notícias. Uma violação em grupo ocupava o
“prime-time” do telejornal, ao que parece o Governo havia criado uma lei que
obrigava as pessoas a nascer com menos de um metro de forma a poupar nas casas –
“mais andares para a mesma altura total” foi um conceito considerado brilhante no
Conselho de Ministros - e a morrer no dia seguinte à entrada na reforma
repulsiva, economizando em prestações sociais. Estranhamente – já que a sodomia
é um tema que normalmente me agrada - continuei apático. Mas tudo isso não me
fazia esquecê-la… onde estaria?
Mais tarde fui
até ao rio, olhei-o nostalgicamente. Era, de facto, o rio errado, o momento
errado mas, sem saber porquê, aquele cheiro agradava-me, quase salivava de
reflexos pavlovianos ao lembrar o genuíno reflexo dela nas águas do Rio Certo.
Sentei-me nas margens, alimentando-o com as lágrimas que me percorriam o
sangue, tal qual quando, na infância, atirava amendoins aos animais no Jardim
Zoológico. Depois, num estranho momento, talvez motivado por um hipocondríaco
excesso de insolação lunar, senti-me leve, deixei de sentir o que quer que
fosse, de querer saber alguma coisa e voei por sobre tudo.
Soube apenas
que a guardaria para sempre – onde quer que ela estivesse. E ainda hoje isso me
basta.