TRILOGIA DO LUAR (PARA OS ÚLTIMOS AMANTES, NO MAIS VERDADEIRO SENTIDO DO TERMO)
I
Reflexos
Depois de agitar (antes de usar, como convém) a sangria do jantar e
afins posteriores, ela quis enviar-lhe o reflexo do seu olhar na Lua (lá em
cima, tão longe, tão longe quanto ele estava), para que se sentissem mais
próximos do que a própria ideia de distância permitiria, partilhando os
intranquilos cheiros e sons da noite, os desejos, a própria Lua -
partilhando-se sem corpos, mas em cúmplices olhares.
Ela tinha um plano: Primeiro olhava a lagoa, depois seu olhar
reflectir-se-ia no Mar da Tranquilidade (mesmo ali ao virar da esquina da
bandeira do Armstrong) e, depois ainda, o reflexo tornaria a descer acertando
no coração dele, provocando um “efeito borboleta” de consequências
imprevisíveis. Mas como o alegre torpor da sangria estava a desvanecer-se e a
realidade começava a atacar infamemente, lembrou que se havia prometido, depois
do último mergulho impulsivo que havia dado, que nunca mais daria ponto sem nó,
não mais se afogaria num abraço, não garantindo, primeiro, que haveria um
salva-vidas por perto – nem que fosse uma frase
(desculpa lá que sou claustrofóbica)
ou outra coisa qualquer, de forma a que pudesse fugir sempre que
quisesse, sem se comprometer, sem nunca chegar ao ponto de não-retorno, como o
têm de fazer os pilotos de avião que aterram nas ilhas.
Então passou ao Plano B: O joelho esquerdo dele tornou-se o alvo já
que, mesmo que ele apenas tropeçasse à conta desse reflexo, saberia por certo
que aquela teria sido mais uma piadola
dela – ninguém tropeça deitado a não ser em contos parvos, não é?
Mas ele havia adormecido, de tanto esperar pelo reflexo dela na própria
noite – horas sem minutos e minutos sem segundos, de tão só que o tempo estava
–, e a madrugada embalava-lhe o corpo, qual navio à deriva, enquanto sonhava
que ela lhe havia oferecido o reflexo da Lua numa lagoa, onde ambos tomavam
banho, desnudos de tudo, sem distância, sem medos, sem retorno.
II
Perplexos
Depois acharam que a virtualidade era sinónimo de virtude, que paixão
era vontade, que o tempo deixaria de existir se fizessem muita (mas muita) força
- e assim -, depois fizeram amor sem nunca se tocarem – as tecnologias às vezes
ajudam a imaginação… -, depois fizeram-se casal sem nunca discutirem quem é que,
no dia seguinte de manhã, iria primeiro à casa de banho,
(despacha-te que estou com um atraso brutal e coisas do género humano)
depois brincaram com as palavras, com partes dos corpos, diletantes
brincaram com os corpos distantes - quais ilhas é espera de um tsunami de mar -, brincaram um com o outro
até à exaustão das vozes e dos delírios e dos copos, diluídos na madrugada que
era deles. Ou seja, na única, primeira e última verdadeira madrugada dos
corpos.
Claro está que concluíram que, afinal, havia sido o tempo que os
esquecera, não ao contrário. Felizmente. Assim, nada havia que os pudesse deter
– tinham tudo para que desse errado e, consequentemente, tudo tinham para que
desse certo. Ele amava-a, ela esperava-o, ele desesperava por ela, ela
suspirava-o, seus corpos tentavam reproduzir os gritos da alma. Sem sucesso, é
certo, mas tudo valia por todo aquele esforço, por eles, por um “nós” que se
formava, qual galáxia nascida de um estranho buraco negro, violando todas as
leis da Física. E da Vida. E assim de novo. Mas eram eles, ali, naquele momento,
quem fazia nascer toda uma nova espécie, os filhos do Amor. Foleiro? Mas
verdade. A Verdade. Disfarçada de Vida.
III
Anexos
Depois veio a Vida disfarçada de tempestade num qualquer deserto, depois
vieram os conselhos – deles ou de quaisquer outros, para eles ou para os outros
em que se tornariam -, depois veio a realidade indecentemente disfarçada de
realidade, depois vieram as horas de trabalho e as chatices e os subsídios a
menos e os sindicalistas e o patronato e as insuportáveis séries televisivas e o
empréstimo bancário que foi recusado e a mulher-a-dias que se enganou na sopa e
o papel higiénico que acabou e a paciência que se esgotou e o assimétrico tempo
que parece que passa mais depressa para uns que para outros mesmo quando parece
que as almas se haviam fundido há muito e quando o periquito tem vontade de
fugir e quando quem existe deveria ser exterminado só para não atrapalhar a
própria existência quando tudo e as noticias e todos os locais do mundo os
soterravam quando até as palavras fugiam para o deserto só para terem a certeza
de que não se cruzariam com sinónimos…
Pára tudo! Chiça!
(Agora? Agora sobra apenas a Saudade. Disfarçada de Morte.)