CUOTIDIANO

terça-feira, fevereiro 24, 2009

O amor tem destas coisas

O amor tem destas coisas: por vezes acaba, morre, pim. Mas depois, estranhamente, renasce das cinzas de um outro amor que ardeu demais, ao ponto de queimar os olhos, doer ao toque. Renasce, simplesmente renasce, com canto de pássaro e volúpia no riso.

E apesar de saber que assim é, até agora eu carregava e alimentava os meus medos de sempre, que me impediam de partilhar a minha vida, de me aproximar de alguém e sentir o hálito dos corpos, o hábito da pele, o tempo demorado de um olhar cúmplice. Temia que me doesse tudo, ao passar pelas dores de parto de um novo amor. Melhor - destilava medo.

Mas foi agora mesmo, aqui, que tudo mudou. Na calmaria de um lento olhar sobre o ondulado reflexo das estrelas no rio, no preciso ponto onde um barco de sonhos encalhou às tuas mãos pequenas – mas enormes de mundos –, eu vi o amor renascer, tão precioso e último quanto o primeiro, erguido dos cinzentos temores que eu arrastava, agrilhoados ao sangue e aos passos. E ao vê-lo assim, puro de água aos meus olhos cansados, rasguei o peito dos medos, fiz o corpo à entrega, os lábios a ti e, num instante que velarei para sempre, trocámos de almas, num beijo que esvoaçou melodias.

E então, agora mesmo, aqui, que nos coroámos amantes eternos, sei que para sempre transportaremos o sabor um do outro aos ombros, atravessando juntos todos os risos, todos os rios, todas as dores e todos os medos das nossas vidas, até que não me seja concedido nada mais que um beijo de despedida, num último desejo de um condenado a paixão perpétua.

Apaixonei-me, sim apaixonei-me, agora mesmo, aqui.

(Sorrio. Felizmente, o que sempre temera acabara de acontecer.)

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terça-feira, fevereiro 10, 2009

Superstição

Antes de sair de casa, ela cumpriu com todos os seus rituais costumeiros: regou o trevo de quatro folhas com a água benta fanada na igreja do bairro, espalhou dentes de alho pelas várias divisões como se de Haze Alfazema se tratasse, recitou umas quantas rezas ensinadas pelo Professor Ketanga e, para que a sorte não a abandonasse no emprego, guardou na mala um termo cheio de chá feito com umas ervas místicas (ou míticas, não se lembrava bem) vindas das profundezas do Brasil – chá esse que beberia de duas em duas horas, de forma a que, adicionalmente, lhe provocasse uma belíssima e sempre agradável limpeza intestinal. Colocou também na mala a sua inseparável ferradura, benzeu-se sete vezes e, finalmente, saiu para a rua sentindo-se completamente protegida. Sorriu.

Mal pisou o passeio, um gato preto atravessou-se-lhe pela frente. Qual Texas Kid, com uma mão despejou-lhe em cima o chá ainda a ferver e, com a outra, atirou-lhe a ferradura à cabeça, fazendo com que o crânio do animal desse todo um novo colorido e significado à palavra puzzle – que, aliás e curiosamente, tem a tradução de “quebra-cabeças”.

É que, de facto, gato preto dá azar.

Ao gato.

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domingo, fevereiro 01, 2009

Desencontros (I)

Quando ele chegou à sua beira e lhe disse, em tom baixo e terno, que a amava pelo que realmente ela era por dentro, independentemente do seu físico, ficou petrificada. Tantos anos a cuidar-se – ginásios, dietas, esteticistas, sofrimentos, sacrifícios – para conseguir aquele corpo escultural, atingindo um ponto de deslumbramento tal que até os reis do piropo, os operários da construção civil, de tão boquiabertos que ficavam, não lhe conseguiam, sequer, assobiar dos andaimes, e aquele camelo a borrifar-se assim, numa obra de arte - sim, porque era de arte que se tratava - que tanto trabalho lhe havia dado a criar. Não podia ser.

- Estás a brincar, não estás? – perguntou, com uma réstia de esperança.

- Não, meu amor, não estou. É isso mesmo que eu sinto, querida.

Enquanto ele acabava de sorrir docemente, ela flectiu ligeiramente os joelhos, saltou, já no ar esticou a perna, e aterrou no queixo dele com o pé direito à frente, num poderoso e muito treinado golpe de "kung-fu". Enquanto ele, dolorosamente e ainda estonteado, se tentava levantar, ela arrancou furiosamente umas quantas pedras da calçada e começou a atirar-lhas - com grande garbo, diga-se -, enquanto ele fugia a sete pés, tentando salvar-se daquela imensa chuva de granizo calcário.

- Maricas, é o que tu és! A fugir dessa maneira! Maricas!

Sem se dar conta, ela havia acertado – de facto, ele só tentava arranjar uma maneira suave de lhe confessar que, afinal, era homossexual…

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