terça-feira, janeiro 12, 2016
domingo, maio 11, 2014
Açorda de Bacalhau
Ontem fiz açorda de bacalhau.
Usei o pão que há uma semana havia comprado para ti – escuro, de cereais, como
tu gostas -, para te levar o pequeno-almoço à cama, quando ainda supunha que virias
dormir abraçada comigo. Esperei uma semana. Mas tu não vieste.
A açorda de bacalhau estava
excelente. Tinha coentros, alho qb, um cheirinho de azeite – tudo fantástico. Mas
tu não vieste.
Hoje acordei sozinho. Como ontem.
E anteontem. Como a semana passada.
(Vou percorrendo a vida assim,
enquanto não vens. Sem partilhar.
Virás?)
quarta-feira, dezembro 25, 2013
Sistema Binário da Existência (a minha singela homenagem ao Natal)
"Dormir faz fome. Comer faz sono. Acordo porque tenho fome. Adormeço porque comi. Nos intervalos, faço as necessidades."
Miguel Esteves Cardoso
quinta-feira, novembro 21, 2013
Quando ela partiu
Um dia ela
partiu sem deixar rasto, o que me deixou sozinho com a sempre difícil tarefa
das partilhas. Decidi ficar com a saudade, a sede e o sabor dos breves momentos
juntos - lábios e mãos incluídos -, deixando-lhe o dia-a-dia, o abraço em
espera e o instante exacto e absurdamente preciso da nossa morte. Mas tudo isso
não me fazia esquecê-la… onde estaria?
Nesse dia à
noite, no meu quarto vazio até de mim, lembrei-a. Não conseguia dormir, sofro
de insónias cómicas, cósmicas ou lá o que é que o meu médico disse. Fui até à
janela. A noite baralhava estrelas pelas galáxias, aviões sulcavam traços de
realidade a pincel e sons, casais desligavam luzes ligando abraços em
simultâneo, ouvia-se a brisa beijando as folhas das árvores que, aos pares, brincavam
ao homem-estátua, carros faziam piões no asfalto só para o ouvir gritar – ou
seja, havia vida que se espalhava como epidemia na noite, desde os locais mais
longínquos do espaço até aos corações mais longínquos do meu bairro. E eu ali,
à espera, mais uma vez adiando-me para outro século, para outra vida que não
teria. Mas tudo isso não me fazia esquecê-la… onde estaria?
De manhã
acordei só segundos depois de me levantar, tal era a pressa de ter notícias
dela. Percorri telemóveis, mails, caixa de correio, porteiro, até me revistei
por dentro à procura de um simples recado que fosse, um bilhete, um canhoto do
cinema onde se sentisse a presença dela, do seu sabonete de alma. Nada. Liguei
a televisão. Apático ouvi as notícias. Uma violação em grupo ocupava o
“prime-time” do telejornal, ao que parece o Governo havia criado uma lei que
obrigava as pessoas a nascer com menos de um metro de forma a poupar nas casas –
“mais andares para a mesma altura total” foi um conceito considerado brilhante no
Conselho de Ministros - e a morrer no dia seguinte à entrada na reforma
repulsiva, economizando em prestações sociais. Estranhamente – já que a sodomia
é um tema que normalmente me agrada - continuei apático. Mas tudo isso não me
fazia esquecê-la… onde estaria?
Mais tarde fui
até ao rio, olhei-o nostalgicamente. Era, de facto, o rio errado, o momento
errado mas, sem saber porquê, aquele cheiro agradava-me, quase salivava de
reflexos pavlovianos ao lembrar o genuíno reflexo dela nas águas do Rio Certo.
Sentei-me nas margens, alimentando-o com as lágrimas que me percorriam o
sangue, tal qual quando, na infância, atirava amendoins aos animais no Jardim
Zoológico. Depois, num estranho momento, talvez motivado por um hipocondríaco
excesso de insolação lunar, senti-me leve, deixei de sentir o que quer que
fosse, de querer saber alguma coisa e voei por sobre tudo.
Soube apenas
que a guardaria para sempre – onde quer que ela estivesse. E ainda hoje isso me
basta.
quarta-feira, outubro 23, 2013
Poesia Erótica Censurada
Combinámos encontrarmo-nos
no mesmo café de sempre. Fui mais cedo, só para garantir o prazer
antecipado de a ver aproximar. No fundo, esticando
o prazer. Sentei-me. Pouco depois ela chegou, trazendo a maresia, as pedras e o
cheiro a estrelas com ela. Ao vê-la cada vez maior meu corpo tremia – controla-te,
estúpido! -, só desejando saltar para o seu abraço, qual cão com medo das
trovoadas.
Trocámos
algumas palavras de ocasião mas os corpos desejavam-se mais, muito mais do que
as palavras. Beijámo-nos. Demos as mãos, apertámo-las, beijámo-nos de novo. E
agora?
No quarto
abracei-a. Depois tirámos as roupas, despimo-nos de passados, esquecemos o
futuro e ficámos – como sempre assim deveria ser – vivos no presente. E
abraçados – como sempre assim deveria ser.
Depois
beijei-lhe o que é normalmente inacessível, o que a fez curvar sobre si
própria, pés e cabeça bem seguras na cama, qual ponte que nos levaria à outra
margem do prazer. Ouvi-a gemer. Por dentro sorri, por fora beijei. Beijei mais
ainda.
Depois ainda escalei
montanhas, passando lentamente pelo seu tronco, de um branco tão puro quão
genuína era a espera. Beijei-as devagar enquanto se eriçavam de desejo. Subi o
beijo para o seu pescoço, subi mais ainda e – sempre lentamente - trocámos
línguas, trocámos lábios, sabores, sons. Sem saber fomos trocando sonhos.
Então entrei
nela devagar, à descoberta do mais profundo dela. Entrei e saí, demorada, saborosamente,
enquanto com uma mão lhe segurava a cintura, mantendo o ritmo dos corpos - que
suspiravam almas pelos poros sob a forma de um suor da água mais pura –
enquanto o cabelo dela esvoaçava, entrelaçado pelas pontas dos dedos da minha
outra mão, que suavemente lhe massajavam a nuca, libertando as vontades mais
inconfessáveis e que ela havia reprimido até àquele dia.
O ritmo
aumentou. O sangue subia-me a tudo o que era extremo. As coxas dela ferviam nas
minhas a cada salto de corsa, nem que caíssem tectos e céus e preconceitos eu
não conseguiria parar, em silêncio de gemido ela pedia-me – melhor, ordenava-me
– para viajarmos até a um qualquer lado – diferente de tudo o que já havíamos
experienciado até então - que nos chamava, chamava muito, cada vez mais, mais, mais,
MAIS, MAIS,
MAIS, mais
devagar, devagar, espera, espera…
chegámos…
Sentámo-nos no
mesmo café de sempre, trocámos palavras de ocasião. Curiosamente, os nossos corpos
continuavam a desejar-se mais, muito mais do que as palavras. Dissemos adeus. Beijámo-nos.
Ao vê-la
partir abracei-a com lágrimas. Dentro dela eu havia renascido.
quarta-feira, outubro 09, 2013
Puta de vida!
Para que ela
voltasse ele decidiu fazer tudo o que pudesse excepto, claro, falar com ela
pedindo-lhe – eventualmente implorando-lhe - para voltar.
Fez cenas voodoo, escreveu poesia tão sentida quanto
má ao ponto de ninguém a ter lido, por confusão, miopia ou alcoolismo
declarou-se a uma tipa de alterne, chegou até a fazer sacrifícios de monossílabos
ao Douro, lançando palavras em contra-corrente… mas nada.
Ela limitava-se
a mirar o mar mas não a ele, ela esperava a vida num outro século que não este,
saudava até o senhor da pedra mas não aquele, cantava todas as estrelas
extintas, toda a maresia – mas nunca as do presente. Por isso, para ela ele
havia deixado de existir – havia passado a “recordação número 27” -, pelo que
se limitava a abraçar as palavras optando, desse modo, pela segurança de não
amar e apenas sobreviver à conta de sons, encontros de poesia, reuniões de família
e obrigações conjugais.
(“É mais calmo
e não dá bronca” - citando e não concordando, claro. Adiante. Claro – mais uma
vez.)
Enquanto
passeava o cão pelas ruas antes que fosse a hora sempre exacta e certa de fazer
o almoço sentiu um estranho frio na brisa. Sentiu falta nas mãos. Saudade nos
lábios. Tristeza no riso. Então lembrou-o, enquanto as lágrimas que o coração vertia,
lentamente se espalhavam pelas suas veias.
O cão fez o
que tinha a fazer. Ela recolheu.
(Puta de vida!)
sexta-feira, outubro 04, 2013
Momentos
Às vezes penso
que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de
risos que me preencham. Por outras palavras: sinto-me permanentemente vazio mas,
simultaneamente, com um estranho lastro que me impede de voar, sequer andar,
sequer querer o que quer que seja, adiando-me
para outro século.
Às vezes também
penso que seria fácil desculpabilizar-me, desculpabilizar-te, dizer a mim mesmo
(dentro do espírito de “o copo partiu-se”, como se existissem copos com
instintos suicidas…) que as decisões se tomaram, em vez de assumir que foram
efectivamente tomadas ou, no mínimo, aceites. Também seria fácil ficar à espera
que algo acontecesse, tentando apenas manter-me à tona da mágoa, não me asfixiando
na angústia enquanto teu nome placidamente me percorre as veias, como lâmina
sem destino.
Mas,
felizmente, às vezes não penso. Por isso deixo-me arrastar pela suave ondulação
do rio que foi nosso por breves mas incendiados momentos, pelas invisíveis correntes
com que ele me abraça e que, todos os dias, inexplicável e implacavelmente, me
arrastam até teus lábios de nuvem distante, onde me afogo lentamente com um ingénuo
sorriso de criança.
Confesso
também: às vezes não penso em mais nada que teu corpo que, num estranho parto e
em dias de milagre, nasce dos meus olhos sob a forma de lágrima. E aí espero –
por mais que eu o queira racionalmente contrariar - de novo por ti. Por ti
Mulher, por ti Sonho, por ti Desejo – seja
o que for, no entanto por certo maiúsculo.
Mas hoje
espero prosaicamente apenas por um telefonema teu, a horas ou a desoras – nada demais,
não é? -, para, ignorando as palavras que possamos dizer, exclusivamente ouvir as
ondulações dos sons da tua voz,
(“estauê?”)
e, assim, sentir as ondulações do teu corpo – o derradeiro
e definitivo rio que, percorrendo as margens da loucura, sem piedade me atrai, como
se fora o último abismo da ternura.
quinta-feira, setembro 26, 2013
A minha estranha forma de morte (*)
I
Hoje morri
mais um bocado. Aliás, hoje um bocado de mim morreu. Mais aliás ainda, hoje
morri.
Conforme
estatística que acabo de inventar, uma pessoa só se apaixona de 20 em 20 anos e
como – muito provavelmente – já não duro tanto, esta seria a minha última
oportunidade de ser feliz (sim, porque a felicidade nunca é a um, requer no
mínimo dois – eventualmente também uma ovelha, mas isso são outras conversas…);
por isso ---
II
Não mais te
irei esperar ao cais de um Douro qualquer. Não mais aguardarei barcos ou
horizontes cada vez mais longínquos, tua voz com teu sotaque, teu corpo com
tuas curvas, tuas curvas, cada uma delas com seu desejo particular e
extravagante. Não mais.
Que fique
claro: Faço isto não por ti, não por nenhum romantismo estranho e perverso,
nada disso. Apenas porque a dor me faz gases e eu preciso de trabalhar em
sociedade. Por isso ---
III
Hoje renasci
neste cais. Enquanto assistia à morte do horizonte em bocados de cor,
lembrei-me de nós e chorei. Depois lembrei-me de ti e sorri. Por isso ---
Abracei uma
ovelha e parti.
____________________________________________________________
(*)
Para ti que sabes quem és, de mim que não faço a mínima ideia quem sou. sexta-feira, setembro 20, 2013
Bandeirantes (*)
I
Quando ela lhe perguntou
- Gostas mesmo de mim ou estás
aqui, apenas, para espetar a bandeirinha?
ele teve uma imediata e
consequente crise de impotência.
Para começo… “bandeirinha”?...
nem “tronquito”, nem “canhão-do-amor”, nem “Zé Manel”, nem (ao menos) “bandeira”
que seja?... Para além disso e para piorar a coisa, essa frase trouxe à
evidência que ela desconfiava que ele a queria, apenas e exclusivamente, pelo seu
corpo.
E era verdade. Ele queria-a. Muito.
Sim, a verdade é que ele queria-a pelo corpo - mas inteiro, com tudo o que com
ele ela trazia: lábios, olhos, vagina – mas também desejos, memórias, saudades,
tudo o que o corpo dela arrastava como cicatrizes de tempo, como marcas
profundas de quem existiu e ali o afirmava, desnuda de preconceitos, roupas, olhares
de vizinhos, marcas de quem até ali não se havia limitado a sobreviver. De quem
havia sido, era e seria, a Mulher, a derradeira e decisiva noiva do luar,
docemente reflectida na alma dele. E como ele desalmadamente a amava…
II
Quando se encontraram não houve
tempo para palavras, os corpos foram mais rápidos e elas apanhadas de surpresa –
ou seja e na confusão, os lábios não tiveram tempo de exprimir palavras, apenas
de beijar. Muito. E os lábios dela não eram os lábios dela, eram ela sob a
forma de lábios, eram o Amor sob a forma de beijo.
III
Quando se despediram não houve
tempo para despedidas – ela ficaria para sempre adormecida na alma que ele
escondia. Ou seja, escondidos e abraçados para sempre. Como os Amantes devem
ser – apenas e só, meros personagens invisíveis na maiúscula História do Amor.
(*) – Para quem já não se lembre
da absurda cultura que nos impingiram (infligiram?) na Primária, eram aqueles
malucos que penetravam Brasil adentro à procura de minérios, escravos e mamas.
A que eufemisticamente chamavam “riquezas naturais”. Chamo à atenção que “penetravam”
é a palavra-chave. Ok, podem
continuar a ler.
quarta-feira, agosto 07, 2013
Sotaque
- Esse teu
sotaque dá-me cá um tesão…
ela deu-lhe um
estalo. Por dentro sorriu.
Mais tarde foi
a casa dele ver o Rembrandt que ele não tinha. E sussurrou-lhe palavras e palavras
e mais palavras ao ouvido. Com carregado sotaque.
quarta-feira, julho 17, 2013
terça-feira, maio 07, 2013
Ao Sol de África
O Sol de África
parecia que brotava do chão, ainda sujo de raízes e terra, sacudindo-se, enquanto
se erguia. Era vermelho, de um vermelho que não se encontra na Europa por mais
que pintores e marketeers se esforcem,
de um tamanho que mais parecia uma nave extraterrestre preparando-se para
regressar a um qualquer planeta distante - eventualmente imaginário, mas seu.
Bola de fogo é
pouco para o definir. A verdade é que a sensação era a de uma bola de fogo propriamente dita entrando-nos pela boca, narinas, ouvidos,
até que nos enchesse por completo a alma de espanto e calor. E então ficávamos
a olhar, perplexos, como se da primeira vez, como se de um parto de felicidade
e encantamento se tratasse. Como se ele nos renascesse e redimisse das múltiplas mortes
da noite.
Com um amanhecer
daqueles, nem poetas se lembrariam de divagar sobre estrelas e a profundeza dos
céus – não, o Sol ocupava todo e qualquer espaço, mental e físico. E espaço é
coisa que não faltava – nem falta – em África. Parámos o jipe, não dissemos
palavra, e esperámos sabe-se lá o quê, olhando, aquecendo, esperando que ele se
erguesse, definitivo e nobre por sobre nós, aquecendo, enquanto os sons estridentes
dos animais celebravam o seu regresso – ele que na véspera, generosamente,
havia ido distribuir gotas de si próprio para outros lados, qual leiteiro do
século XIX, porta a porta, “quanto é que deseja, 230?”, na sua forma
doce e peculiar de aquecer corações pelo Mundo fora.
Éramos putos e
era o tempo de sermos despreocupados. Tínhamos tempo para olhar o Sol e tudo o
que interessa. Tínhamos tempo e todo o espaço de África.
E o Sol era
nosso.
sábado, abril 13, 2013
Unanimismos
Quando se
pergunta a qualquer português quem é o maior culpado pela crise que atravessamos,
não há unanimidade - todos apontam para Passos Coelho, é certo, mas o dedo nem
sempre é o mesmo.
domingo, março 17, 2013
Castelo
Lembro quando
parava à tua porta, subia, e tu me abrias o teu coração. Ou seja, a tua/minha
casa, o teu/meu porto, o teu/meu castelo – ou, abreviadamente, o meu/nosso lar.
(Tento de
novo.)
Lembro quando,
lentamente, chegava e parava à tua porta. Desligava o carro e não saía dele,
saboreando os últimos acordes daquela canção que era tua - apenas e só porque eu a
gravara exclusivamente para ti -, aquele conjunto único de sons que me fazia
embrulhar-te na minha imaginação, transformando-te naquele presente (para mim?
obrigado!) lindo, renovado, eternamente diferente por aparentemente igual –
qual labareda hipnótica de uma lareira imaginária que nunca tivemos. Ou seja, saboreava
a espera e depois - aí sim - subia. Até ti. Até às estrelas. Até nós.
Havia
problemas nas canalizações, por isso os armários cheiravam mal - à trampa do
vizinho de cima -, os cd’s eram poucos e repetitivos, o restaurante onde
encomendávamos os bifes “com o molho excepcional da casa” era sempre o mesmo –
mas a verdade é que me sentia seguro no teu regaço, no abraço pelo qual ansiava
todos os minutos de todos os dias, talvez o tal de “abraço excepcional da casa”…
Tinhas um
piano, lembro também. Nenhum de nós sabia tocar mas eu lá ia arranhando uns acordes que (nos) soavam
bem - como o que quer que aconteça a partir do terceiro copo. Aliás, contigo tudo
soava bem, ainda melhor quando dizias que me amavas, sem preconceitos, roupas
ou destinos marcados, apenas tu, apenas nua, apenas desejo. Apenas beijo.
Confesso que,
aí, me sentia privilegiado. Talvez mesmo importante. Não é que a mulher mais
bonita e incrível e fantástica do mundo gostava de mim – e, acessoriamente, eu
dela?! Estaria mesmo a acontecer?!
Mas todos os
sonhos têm um acordar. Então houve um dia em que o meu tempo se esgotou - acabaram-se-me
as histórias com piada, já não te conseguia fazer sorrir, a minha mão já não te
estremecia, o meu beijo já não contava, já discutíamos sobre quem iria primeiro
à casa de banho. Tornou-se evidente, então, que o meu prazo de validade
expirara. Pediste-me a chave de casa de volta – e o que é curioso é que eu
nunca a utilizara, por adorar que me abrisses o coração sob a forma de porta -,
devolvi-ta, e nunca mais te vi, a mulher que tanto amei.
Claro está que
ainda hoje – esporadicamente, é certo - paro à tua porta. Não subo. Mas vou-me
embora ouvindo sempre a mesma canção que ouvia. A que era nossa – melhor, a que
será nossa para sempre.
quarta-feira, março 13, 2013
O Momento
Houve um momento, aquele momento.
Nada mais. A última oportunidade – ou seja, O momento. Ela chegou e sentou-se.
Ele não chegou – porque morto sem saber, porque vivo sem sabor. Mas sentou-se. Poisou
a sua mão na dela. Poisou. Apenas poisando. Olharam-se d’alma.
Depois olharam em frente, apesar
de que ele a olhava de soslaio e de medo morto, o pôr-do-sol repetia-se mas de
forma sempre única – ou em segredo -, os cães uivantes que passavam, por
intuição “aprovavam-nos”, as morangoskas
que circulavam pelas mesas e pelo sangue olhavam-nos, mas…. olharam de novo à
volta, olharam-se de novo, algo entre eles era novo. Seria? Seja como for, olharam-se.
Sem tempo, medo, ou o que quer que fosse que os impedisse de estar vivos.
… E ela trazia todo o fulgor das
sementes a despontar de sol, ele apenas se trazia. Sem sol, sementes há muito
abandonadas, desejos sob a forma de educação – algo que ele sempre desprezara,
mas que lhe circulava no sangue e que não havia como evitar.
Como amá-la?
É que amá-la MESMO era tê-la,
possuí-la, deixar que ela o possuísse – ou, no limite e por instantes
desprendidos da palavra “sempre”, serem eternos. Eternidade? A sério… eternidade?
Sim, ETERNIDADE, a única forma
que a vida encontra para se transformar apenas e só num momento. Único.
(Depois morto. Por isso eterno.)
sexta-feira, fevereiro 08, 2013
Atlântico Norte
Ela navega sobre todas as
palavras, ao ponto dos sons a terem feito nascer de uma só – “doce”, que é a
palavra perfeita. Para ela. Como ela.
Corrigindo: Ela é doce quanto
navegar sobre todos os sons, ao estranho ponto do prazer de nos deixarmos afogar
no amor feito pelos madrugadores apitos das fábricas com a grande sinfonia
esquecida do último bêbado que, em gritos desafinados, roubou a noite. E,
depois, o som do seu sorriso prolonga a doçura dos próprios sons, naquele
infindo gozo dos inesquecíveis momentos que vivem apenas e só nos pequenos
instantes a que chamamos eternidade.
Corrigindo outra vez: Ela é o som
da palavra “doce”, ela é o som de todas as palavras, tão doce quanto seu corpo,
sua voz, ou apenas sua imagem refletida nas ondas que dão à costa, sôfregas de
terra firme - mas embaladas de sonhos -, mais doce que a última maré de Verão
beijando o pôr-do-sol, que as mãos apertadas dos amantes que resistem, que a
maresia disfarçada dos mil cheiros da madeira molhada, por entre o chamamento
da lua. Aliás, mais doce, ainda, que a limonada da infância, com quilos de
açúcar e sabor a família, a avós. E saudade.
Pureza. Se calhar “pureza” é a
única palavra dela pela qual eu trocaria “doce”. Talvez. Mas do mesmo modo que
não trocaria uma troca de olhares – de palavras, que fosse – com ela por mais nada,
se calhar não teria coragem de trocar de palavras. (Talvez). Pensando melhor: se
calhar – por ela – até roubaria “pureza” e acrescentá-la-ia a “doce”, mesmo
arriscando prisão morfológica. Ficaria, então, “pudoce”, eventualmente “doceza”
– ou, se calhar, apenas “namorada”, a palavra mais bonita que jamais
inventaram.
(Não minha, não de ninguém,
apenas da vida pura, doce, de toda a Vida que maiusculamente ela merece. É que ninguém
a atará a nada – nem a própria vida -, já que a Liberdade lhe pertence, ela É a
Liberdade, e está mesmo ali, aqui, em todo o lado, ao virar da esquina dos
sonhos que todos temos. Ou seja, onde ela vive. Docemente.)
domingo, dezembro 02, 2012
No café
Foram ao café,
ao virar da esquina, juntos, como sempre juntos, como se da primeira vez.
Casados há mais de cinquenta anos, faziam tudo com se fora o primeiro encontro.
Sentaram-se. Vieram as “bicas” do costume, também elas juntas. É certo que ela
já não dizia nada de coerente, mas ele ouvia-a, nem que fosse apenas pelo tom
da sua voz que, apesar de tanto tempo passado, ainda lhe fazia estremecer a
alma.
Voltaram para
casa, ele a segurá-la, ela a apoiar-se nele, falando, falando sempre, por mais
disparatadas que fossem as frases, que não importa o sentido das palavras, apenas
o tom, quando se ama. E, no caso, até deveria ser obrigatório haver uma palavra
nova para o seu tanto Amor. “Tantamor”?
Chegaram a
casa. Ele mudou-lhe a fralda, deitou-a e tapou-a. Deu-lhe um prolongado beijo
na testa. Sorriu. Esperou que ela adormecesse, entre lágrimas estrangulou-a com
o cinto, depois foi até ao armário, subiu ao escadote há muito lá colocado,
atou o próprio pescoço ao varão que havia fortalecido e atirou-se.
Segundos
depois, deu-lhe a mão e subiram juntos aos Céus que não existiam – é que, quando
se ama, o Paraíso é como o café, é mesmo ali, ao virar da esquina.
- “Foi um
homicídio-suicídio”, sentenciou convicto o inspector da polícia destacado para
a ocorrência.
Eles riram. De
mãos dadas.
terça-feira, novembro 27, 2012
(Mais) Insónias
Chega a noite e custa estar vivo - quanto mais adormecer. E muito mais estar dormente, de dor, de vida. De mente.
Passar a noite
com insónias é complicado – os sons dos carros pelas avenidas, os suspiros das
nuvens que lentamente deslizam, os gritos das fábricas, as dores, as pessoas
que se arrastam como se nem merecessem morrer, o vizinho que mija, o
interruptor que, em plena autonomia quase insular, se liga e desliga várias
vezes só para confirmar que está vivo, o sangue que circula à procura de
destino mas que regressa sempre à casa partida, exacta e precisamente com o
mesmo número de glóbulos, os segundos de agulha que se vão espetando nos
minutos, nas horas, o recordar teu corpo em fotografias e, automaticamente, ouvir
teu riso, lembrar tudo que é teu, tão teu e apenas teu,
Tudo me faz
mal, me faz pior, me apaga, me desliga, me faz ninguém.
E não consigo
dormir, seria tão simples poisar a cabeça na almofada e adormecer, sorrindo,
lembrando um cão da infância ou uma mão a vestir-me um casaco, ou um baloiço,
ou um telhado ou, se nada mais houvesse para escolher, um vôo de um oitavo
andar. Mas não.
Por momentos e
por um estranho acaso, adormeço mas, à medida que me vou aproximando do chão,
vou acordando. Até que, a meio milímetro do fim, acordo.
Meio milímetro
depois, adormeço de novo. Mas no chão. Sem nuvens que me embalem.
segunda-feira, novembro 05, 2012
TÓPICOS (III) - A LARANJA
Ela chegou e
ofereceu-lhe uma laranja. Trazia duas. Não tinha dinheiro.
Estavam na
consulta, ele o professor doutor psiquiatra psicólogo psicanalista e afins, ela
doente – já agora, pessoa e poucos afins mais.
Quando ela
voltou para casa, cortou a laranja sobrante ao meio e partilhou-a com o marido.
Não sorriram.
Quando ele
voltou para casa, deu-a à empregada, que a juntou a todas as outras na
fruteira. Nem sorriu.
Na semana
seguinte, nova consulta. Ele, num esforço sobre-humano, ofereceu-lhe um
sorriso. Trazia apenas um. Tinha dinheiro. Mas escolheu dar-lhe o sorriso. Por
isso o tratamento estava completo. Estava, enfim, curado.
Voltaram cada
um para sua casa. Definitivamente.
(Ele pela
cura, ela pelo suicídio.)
sexta-feira, outubro 26, 2012
Hoje falo sobre fdp’s
A minha mãe
era “portuguesa de 2ª” – isto citando rigorosamente o seu BI, aquela coisa “démodé”
que entretanto pariu o CC (estas abreviaturas são muito parideiras…). Ou seja,
apesar de filha de brancos e, ela própria, mais branca do que o Gasparzinho (o simpático
fantasma, não o sintático sinistro), era de 2ª porque nasceu no Huambo, na
altura “Nova Lisboa”. Claro está que os seus amigos de escola – mantendo a
proporção – seriam, maioritariamente e no mínimo, portugueses de 15ª. Mas
adiante.
(Isto tudo
para – por deformação profissional/matemática – achar que, continuando a manter
as proporções, seremos – quase – todos portugueses de 100º nível, sendo que há
os de 1ª, ou seja, Passos e “sus muchachos”, incluindo o Gasparzinho – o sintático
sinistro, não o simpático fantasma - que só sobrevivem, reconheça-se, porque os
restantes – nós, a apática ralé – vamos deixando.)
Continuando.
Os tais “creme de la creme” chegaram à conclusão – não matemática, não
económica, não racional, mas apenas de fé - que, se nos portássemos bem, sem ondas,
perante os credores, sem discutirmos nada, sem negociarmos nada, apenas
baixando a cabeça para recebermos o esperma em deleite de submissão, chegaríamos
a algum lado, qual cego após vazar os próprios olhos.
(E até, para a
tal recolha de esperma, nos obrigam a pagar a vaselina com juros – que, afinal
e ainda por cima, é serradura!)
Mas o pior é
que a realidade – aquela coisa que, normalmente, não dá jeitinho nenhum –
continua a surgir completamente desfasada dos sonhos delirantes dos portugueses
de 1ª e, infelizmente, mesmo em cima dos piores pesadelos dos de 100º nível.
Mas, como aos “eleitos” – na acepção religiosa do termo – isso não os afecta…
vamos embora, o 100º nível ainda é bom demais para eles, ‘bora aí dar-lhe mais,
ou melhor, tirar-lhes mais!
(Peço desculpa
mas hoje só consigo falar sobre a maior corja de fdp’s que jamais se juntou em
Portugal – falo, evidentemente, dos que actualmente nos (des)governam!)
quinta-feira, outubro 11, 2012
terça-feira, outubro 09, 2012
TÓPICOS (II) - INSÓNIAS
Ele percorre ciclicamente todas
as divisões e entranhas da casa à espera que algo aconteça – quando pela
cozinha, que tenha fome, quando pelo quarto, que tenha sono, quando pela sala
que tenha vontade de ver uma série, novela, concurso, umas tele-vendas que
sejam!
(Mas não.)
Nada. Dá mais voltas e voltas à
casa, revira-se retornando sempre a si mesmo, confere o sabonete das casas de
banho, as lâmpadas nos candeeiros, o fecho das portas - mas nada o embala para
adormecer nem, sequer, lhe dá o mínimo gozo de estar vivo. Aliás, nada poderá
certificar de que o está, pelo menos de um modo minimamente objectivo e científico.
(Se calhar, nada será a sua
melhor opção.)
TÓPICOS (I) - DECLARAÇÃO DE AMOR
Ele faz-lhe uma declaração de
amor, engana-se numa frase qualquer, ainda tenta continuar, ela tenta conter-se
mas não consegue, começa-se a rir, pede desculpa, eram só uma letra ou duas de
diferença, pôrra! Mas o diabo está nos pormenores e o momento fica estragado.
Indiferente a isso e mui
estranhamente, após uma pausa com dores de silêncio e tudo, ele começa-se a rir
também. Estava então criado todo um novo momento, nada é verdadeiramente mais importante
do que rir juntos – de facto, a partilha do riso é a forma mais pura de se almar
alguém.
Depois acalmam, ele retoma a
frase, desta vez não se engana. Mas riem de novo. Abraçados. Pelo momento. Pelo
tempo que entenderem.
(Sem eternidade, mas com corpos.)
segunda-feira, setembro 17, 2012
TRILOGIA DO LUAR (PARA OS ÚLTIMOS AMANTES, NO MAIS VERDADEIRO SENTIDO DO TERMO)
I
Reflexos
Depois de agitar (antes de usar, como convém) a sangria do jantar e
afins posteriores, ela quis enviar-lhe o reflexo do seu olhar na Lua (lá em
cima, tão longe, tão longe quanto ele estava), para que se sentissem mais
próximos do que a própria ideia de distância permitiria, partilhando os
intranquilos cheiros e sons da noite, os desejos, a própria Lua -
partilhando-se sem corpos, mas em cúmplices olhares.
Ela tinha um plano: Primeiro olhava a lagoa, depois seu olhar
reflectir-se-ia no Mar da Tranquilidade (mesmo ali ao virar da esquina da
bandeira do Armstrong) e, depois ainda, o reflexo tornaria a descer acertando
no coração dele, provocando um “efeito borboleta” de consequências
imprevisíveis. Mas como o alegre torpor da sangria estava a desvanecer-se e a
realidade começava a atacar infamemente, lembrou que se havia prometido, depois
do último mergulho impulsivo que havia dado, que nunca mais daria ponto sem nó,
não mais se afogaria num abraço, não garantindo, primeiro, que haveria um
salva-vidas por perto – nem que fosse uma frase
(desculpa lá que sou claustrofóbica)
ou outra coisa qualquer, de forma a que pudesse fugir sempre que
quisesse, sem se comprometer, sem nunca chegar ao ponto de não-retorno, como o
têm de fazer os pilotos de avião que aterram nas ilhas.
Então passou ao Plano B: O joelho esquerdo dele tornou-se o alvo já
que, mesmo que ele apenas tropeçasse à conta desse reflexo, saberia por certo
que aquela teria sido mais uma piadola
dela – ninguém tropeça deitado a não ser em contos parvos, não é?
Mas ele havia adormecido, de tanto esperar pelo reflexo dela na própria
noite – horas sem minutos e minutos sem segundos, de tão só que o tempo estava
–, e a madrugada embalava-lhe o corpo, qual navio à deriva, enquanto sonhava
que ela lhe havia oferecido o reflexo da Lua numa lagoa, onde ambos tomavam
banho, desnudos de tudo, sem distância, sem medos, sem retorno.
II
Perplexos
Depois acharam que a virtualidade era sinónimo de virtude, que paixão
era vontade, que o tempo deixaria de existir se fizessem muita (mas muita) força
- e assim -, depois fizeram amor sem nunca se tocarem – as tecnologias às vezes
ajudam a imaginação… -, depois fizeram-se casal sem nunca discutirem quem é que,
no dia seguinte de manhã, iria primeiro à casa de banho,
(despacha-te que estou com um atraso brutal e coisas do género humano)
depois brincaram com as palavras, com partes dos corpos, diletantes
brincaram com os corpos distantes - quais ilhas é espera de um tsunami de mar -, brincaram um com o outro
até à exaustão das vozes e dos delírios e dos copos, diluídos na madrugada que
era deles. Ou seja, na única, primeira e última verdadeira madrugada dos
corpos.
Claro está que concluíram que, afinal, havia sido o tempo que os
esquecera, não ao contrário. Felizmente. Assim, nada havia que os pudesse deter
– tinham tudo para que desse errado e, consequentemente, tudo tinham para que
desse certo. Ele amava-a, ela esperava-o, ele desesperava por ela, ela
suspirava-o, seus corpos tentavam reproduzir os gritos da alma. Sem sucesso, é
certo, mas tudo valia por todo aquele esforço, por eles, por um “nós” que se
formava, qual galáxia nascida de um estranho buraco negro, violando todas as
leis da Física. E da Vida. E assim de novo. Mas eram eles, ali, naquele momento,
quem fazia nascer toda uma nova espécie, os filhos do Amor. Foleiro? Mas
verdade. A Verdade. Disfarçada de Vida.
III
Anexos
Depois veio a Vida disfarçada de tempestade num qualquer deserto, depois
vieram os conselhos – deles ou de quaisquer outros, para eles ou para os outros
em que se tornariam -, depois veio a realidade indecentemente disfarçada de
realidade, depois vieram as horas de trabalho e as chatices e os subsídios a
menos e os sindicalistas e o patronato e as insuportáveis séries televisivas e o
empréstimo bancário que foi recusado e a mulher-a-dias que se enganou na sopa e
o papel higiénico que acabou e a paciência que se esgotou e o assimétrico tempo
que parece que passa mais depressa para uns que para outros mesmo quando parece
que as almas se haviam fundido há muito e quando o periquito tem vontade de
fugir e quando quem existe deveria ser exterminado só para não atrapalhar a
própria existência quando tudo e as noticias e todos os locais do mundo os
soterravam quando até as palavras fugiam para o deserto só para terem a certeza
de que não se cruzariam com sinónimos…
Pára tudo! Chiça!
(Agora? Agora sobra apenas a Saudade. Disfarçada de Morte.)
quarta-feira, agosto 22, 2012
Ponta Delgada
Quando, numa
festança de arromba, com bombeiros, strippers
e advogados implacáveis – e para a qual até convidaram a Madre Teresa de Calcutá apesar dos seus óbvios problemas de locomoção, ao que parece associados à morte
-, nomearam o Papa João Paulo II como “Aeroporto de Ponta Delgada”, ele
estremeceu de comoção e chorou copiosamente, enquanto Cristo, por solidariedade
com o seu (e do papá, claro…) representante, ordenou um dilúvio e um furacão
para cima das ilhas, chamando-lhe “Gordon”, em homenagem ao gin que acabara de beber de um trago.
Quando
Aeroporto I morreu e o seu sucessor, acabadinho de sair do fumo branco do forno,
se autointitulou de Aeroporto II, a Protecção Civil dos Açores lançou um sério aviso
de alerta.
sexta-feira, junho 22, 2012
Banzão (para o MEC, que nunca me lerá)
Eu sei que morres a cada instante
em que a vês morrer. E finges que nada acontece, e finges que amanhã tudo estará
melhor - pela simples razão que acreditas, mesmo não acreditando. Mas sabes que
isso lhe fará bem – e todos sabemos como o lado psicológico é benéfico, talvez às
vezes fodido - como o Amor. Normalmente benéfico. Como o Amor.
Sei que, com ela – a Amada -, percorres
os dias, as noites, os restaurantes, as douradas grelhadas, como se fossem as
primeiras, apesar de suspirares e rezares sem rezas algumas para que não sejam
as últimas. Sei que sabes que a amas como se fora – e será por certo – a última.
Também sei que não há nada como o último Amor, o único, o único sem talvez, sem
dúvidas, sem nada que atrapalhe, sem ser a puta da Senhora Morte. Mas – sim,
talvez assim seja – talvez só assim saibamos o que é o Amor.
(Estranha forma de aprender, não
é?)
Se calhar Amor é só passearmos de
mão dada no perímetro do vulcão, saber que, de tão perto, nos irá escorregar a
mão da Amada - mas sabendo que, com ela, conseguimos sentir o calor do limite, o
calor limite, o calor, o limite. Ou ela. Ela. Sentimo-la.
Depois vêm os tempos do fim,
sentimo-lo. O último peixe grelhado no Neptuno (que não sabemos ou fingimos não
saber que será o último), os primeiros alperces (que não sabemos se não serão
os últimos), o último beijo (que sabemos que será o primeiro). Depois o último
grito de nós, sendo que quem amamos nos deixará sem que possamos fazer nada - a
não ser morrer, numa estranha solidariedade interior a que os químicos chamam
osmose e a que os mortais chamam “Foda-se!”
Sei que nunca amarei ninguém como
tu a amas, sei que ela sabe que o expões para que te doa menos (como se isso
fora possível…), ao espalhares as dores por nós, mortais. Mas sabes? Trocava a
minha vida pelo vosso Amor, por segundos que fosse. Por isso, aproveitem tudo,
até ao último instante dourado, até que a vida não vos troque os alperces, até
que a mão dela não consiga apertar a tua. Até que o Amor se adie para o
reencontro das almas. Na total e completa felicidade. Sabes? Aquela coisa em
forma de assim.
Eterna.
sábado, junho 16, 2012
Ecos da tequilla
Saídos do
Mexicano, na beira luz espelhada do Tejo, sentámo-nos na areia, apertámos as
mãos e nada dissemos. Esperámos. O quê não sei. Mais margaridas? Talvez. Ou talvez
e apenas as quiséssemos, já que eram elas que, na altura, nos floreavam as
palavras, enquanto nos íamos querendo mais e mais e mais ainda, enquanto apenas
as palavras nos afastavam dos recíprocos corpos, reciprocamente desejosos,
sedentamente tequillados. Apenas sei
que esperei por ti, que esperaste por mim, que nos esperámos no combro da
saudade, por entre as tequilas feitas
de madrugada.
Até que, hoje,
nos reencontrámos aqui. No ponto certo, no momento certo, à beira rio, à beira
nós, de novo à beira luz que sempre espalhaste. Olhámos o Tejo. De novo. De novo
de mãos dadas. Paciente e vagarosamente. Em sabores.
Quando a tequila tomou conta do momento, calámo-nos.
Então, e sem darmos por nada - nem por nós -, a cada beijo bebemo-nos, a cada
abraço embriagámo-nos de corpos, e depois e depois e depois, a cada golo de ti
eu achei que não morreria nunca, que aquele momento era o perfeito amuleto
contra a morte, que aquele perfeito instante era o momento em que a vida se embriagava
de morte, renegando-a para sempre. E sobrávamos nós e nós e nós. E para sempre nos
eternizaríamos, nem que fosse apenas nos imaculados reflexos do luar no Tejo.
No dia
seguinte fui à Loja de Conveniência e comprei uma garrafa de tequila. Cheguei a casa, dei um golo.
Soube-me mal. Faltavas-me, talvez.
(Confesso,
aliás, que depois de tudo o que passámos a vida me sabe mal.)
Mas será
que?...
(Faltas-me)
quarta-feira, maio 02, 2012
When I Need You
Amanhã, à mesma e exacta e certa e
rigorosa hora irei estar à tua porta, à tua espera, para te abraçar e te dizer
que há muito te esperava, desde sempre, desde o muito que não te vi. Mas sei
que, depois, apenas te verei passar e nada te direi. Nada - nem, sequer, que te
espero desde há muito. E para sempre. E à mesma exacta e certa e rigorosa hora.
Mas olhar-te, ver-te a passar e, por momentos, cheirar o teu cheiro, ouvir os
teus passos, deslumbrar-me com o teu cabelo dançando com o vento em câmara lenta, isso, apenas
isso, irá bastar para que amanhã, à mesma exacta e certa e rigorosa hora eu
volte à tua porta, à tua espera, para te abraçar. E, mais uma vez, sei que não
o farei. Mas sabendo que, no dia seguinte, lá estarei de novo para te rever, segundo
a segundo, hora a hora, dia a dia, mês a mês.
(E, sem que saibas, para te amar
outra vez.)
terça-feira, maio 01, 2012
Dia do Trabalhador
Pensei tirar férias de mim. Morrer por uns meses. Desertar um pouco. Pelo menos.
Depois pensei mudar de nome, de tempo, de vontades. Enfim…
Fugir.
Sentei-me à beira do penhasco, ouvindo as aves e as vontades, lembrando-me do que – julgo que – fui, imaginando o que poderia ter sido, o que poderia – se calhar e com uma sorte do catano – vir a ser. Mas
Agora – pim! – passava a ser um tempo chamado Artur. Pim.
De quem passaria a ser amigo? Não sei. De quem me aproximaria? Não sei. Quem, afinal, teria sido? Muito menos. Mas
Não era eu!
(Uf…)
Estava farto de mim, de me aturar, das recônditas voltas dentro da minha cabeça que a realidade dava, qual carrossel absurdo e repetitivo
(pior ainda, sem graça nenhuma!)
Que me ecoava na
Quando de manhã acordei, o meu cão lambeu-me o nome no nariz. Ressacado como estava, achei que o mau hálito era dele. Enganei-me.
Depois tirei férias de mim.
Parti.
(Morri ou nasci?)
quinta-feira, abril 26, 2012
Irrelevâncias
Sei que sabes a total irrelevância que é para mim
Dormires com outro
Sei que sabes a irracional irrelevância que para mim é saber que, eventualmente,
Dormes com outro
Sei que sabes a insignificância que é para mim, passageiramente e apenas isso,
Em contratempo
Dormires com outro
Sei que sabes a irracional irrelevância que para mim é saber que, eventualmente,
Dormes com outro
(vírgulas do catano!)
Sei que sabes a insignificância que é para mim, passageiramente e apenas isso,
Dormires com outro
Mas também sei que sabes que não me é insignificante saber
que o amas
Num preciso e apenas exacto e apenas esse
Momento
Mas também sei que sabes que não me é insignificante saber
que o beijas de boa noiteEm contratempo
(Sei também que o que interessa não é nada disso
É apenas que ele te falte
Ou só e apenas o meu último golo de tempo omisso
Em whisky de malte!)
domingo, abril 22, 2012
Tomates biológicos com parêntesis
Só compro tomates biológicos – sabem ao mesmo, fazem-me a mesma estuporada dor de estômago, mas claro que, evidentemente, dão muito mas muito mais prestígio.
(Aos tomates, claro, que a mim só me fazem passar por estúpido – a mesma coisa pelo dobro do preço… francamente! Ou seja, no meu altruísmo involuntário, faço crer – pelo menos a mim mesmo e por segundos - que aqueles tomates são muitíssimo mais fantásticos do que realmente serão, apesar de, natural e biologicamente, me irem assassinando o estômago - o que, aparentemente, também poderá demostrar o quão fermidáveis são!)
Tomates da merda! – diz o operário dentro de mim enquanto que o meu VIP interior o manda calar, esticando o mindinho mas pensando “porra, estou arrasca!”
(Bom, mas pelo menos olhando para eles consigo adivinhar o futuro - que é sempre em frente e depois virando à esquerda em Leiria - e com muito maior rigor do que a Madame Maya olhando para vaginas bioagradáveis; ou seja, pelo menos sei que, dez minutos depois de os comer, estarei com uma estuporada dor de estômago.)
Tomates da merda!
(Mas não é que valem a pena…)
(Aos tomates, claro, que a mim só me fazem passar por estúpido – a mesma coisa pelo dobro do preço… francamente! Ou seja, no meu altruísmo involuntário, faço crer – pelo menos a mim mesmo e por segundos - que aqueles tomates são muitíssimo mais fantásticos do que realmente serão, apesar de, natural e biologicamente, me irem assassinando o estômago - o que, aparentemente, também poderá demostrar o quão fermidáveis são!)
Tomates da merda! – diz o operário dentro de mim enquanto que o meu VIP interior o manda calar, esticando o mindinho mas pensando “porra, estou arrasca!”
(Bom, mas pelo menos olhando para eles consigo adivinhar o futuro - que é sempre em frente e depois virando à esquerda em Leiria - e com muito maior rigor do que a Madame Maya olhando para vaginas bioagradáveis; ou seja, pelo menos sei que, dez minutos depois de os comer, estarei com uma estuporada dor de estômago.)
Tomates da merda!
(Mas não é que valem a pena…)
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segunda-feira, abril 16, 2012
Porra de canção
Acordou a meio da noite com o som de aviso de uma mensagem. Que horas seriam?
Hesitou entre acordar e ver e talvez fosse quem não queria ou só e apenas a porra de um anúncio do Continente ou não acordar e ficar na expectativa e depois talvez não adormecer e se calhar até que não era o Continente e
Mas quem raio é a estas horas? Perguntou ele
Espera, vou ver – decididamente, ele havia decidido por ela -, que chatice, é uma amiga minha, coitada, anda cheia de problemas com o marido, que chatice
Não era. Era, afinal, apenas o seu inconveniente amigo que, a desoras, lhe enviara uma canção. Para ela. Feita única e exclusivamente para ela, mal cantada, mal tocada, mas apenas e só para ela, ela que lhe povoava todos os mais estranhos e recônditos espaços dentro de si, muito para além das obscuras zonas erógenas do lobo frontal
Que chatice, amanhã vou-lhe dizer que não me volte a fazer destas. Dorme bem, amor, desculpa
Quando, no dia seguinte, ouviu a tal canção pela décima, vigésima vez às escondidas do mundo, achou que, afinal, por mais mal cantada e mal tocada que estivesse (e estava), apesar de tudo e mais alguma coisa e alguma mais também, soava bem melhor e mais alto que qualquer ressonar ou relação instituída ou instituição assumida. Por isso, na noite seguinte, abraçada ao seu companheiro de sempre e para sempre, embalou-se para adormecer – mas desta vez ao som roufenho da porra daquela estúpida canção, mal cantada e mal tocada, mas que lhe continuava a ecoar na alma
Porra de canção!
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quarta-feira, abril 04, 2012
Miss Lua
Era Miss Lua. Apenas porque sim ou só porque dançava só nos limites daquela pista de dança circular, dançando sempre, sempre voltada para o centro. Rodava, rodava, qual Lua à volta da Terra, qual alucinação em torno da música, qual loucura mesmo sem psicólogo clínico que lha decretasse. Pior, sem ninguém que a esperasse. No fim da noite. Ou no fim de nada.
Sentava-se a um canto, bebia o seu copo, o seu copo, o seu copo, o seu corpo e quando já estava pronta para orbitar o pequeno mundo daquela discoteca dos confins de um qualquer e estranho submundo da noite, lá ia ela para a pista – melhor, para o seu limite -, rodando, rodando, mostrando que havia não mundos para além daquele que todos julgávamos e julgamos conhecer, mesmo que nem sequer conheçamos minimamente aquele que nos povoa e polui as entranhas.
Rodava, abria os braços, fechava os olhos, rodava mais ainda, intuía o centro - qual experiente matemático do nada -, rodava, rodava, quem quer que lhe dirigisse a palavra era ignorado, ela rodava para sobreviver, rodava a sobrevivência, se parasse morreria, qual tubarão sem mar mas com discoteca e luzes e sons e gritos e fumo e êxitos da rádio a entranharem-se na roupa, até já a roupa gritava, rodava, rodava, já os olhos não viam, rodava, rodava, já o tempo parava, rodava, rodava, já a noite dançava, rodava, rodava, e depois o seu copo, o seu copo, o seu copo, o seu corpo, tudo começava a fazer mais efeito, a fazer mais, a fazer vontades e realidades próprias e depois é melhor sentar-me. Pensava.
Depois ainda
Sentava-se a um canto, bebia o seu copo. Acalmava. Mas a seguir bebia o seu copo, depois seu copo, o seu corpo e quando já estava calmamente disposta a morrer alguém lhe perguntava se ela dançava ok mas mostra aí as notas ou o cartão e ele exibia a gravata de seda e os botões de punho e as fantasias em que só se acredita após o terceiro copo ou quando nos pagam para acreditar mas mesmo assim ela dizia que não, a única prostituta do Martim Moniz que nunca tinha ido para a cama com ninguém, nem mesmo com o tipo do circo por quem se apaixonara, mas que rodopiava dançando - o que lhe era inaceitável.
Dizem que era virgem, a única prostituta virgem depois da definição, dizem, até, que lhe faltava um braço - mas nunca se chegou a saber, quando tentaram descobrir ela já orbitava a Terra mas em sentido literal, quase que chocava com um satélite meteorológico russo (consta que filho ilegítimo da Soyuz), até que o pequeno mundo daquela discoteca dos confins de um qualquer submundo também levantou voo para além das estrelas e rodopiou à volta dela, desesperado de saudades, olhando só para o centro… que era ela, a partir daquele instante, apenas e só ela.
Foi então que a Terra passou a ter duas luas. Enquanto uma se limitava a cumprir o seu papel obediente à Física e, simplesmente, orbitava, a outra dançava, dançava, dançava, dançava, à descoberta do submundo não assumido que dentro de nós existe, explorando a pista do estranho som das marés que nos adormecem e, simultaneamente, acordam.
Na verdade foi ali que ela realmente nasceu. Banhada pelo outro luar.
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quarta-feira, março 28, 2012
No fim do Mundo
No fim do mundo pensaste em mim, eu sei, era talvez o momento último e portanto certo – e consequente e tal e coisas - para o fazer, talvez sentir, para que algo entre nós acontecesse. Se calhar apenas e só porque o fim do meu mundo eras tu, apenas e exclusiva e excelsamente tu e os teus lábios de mel. Mas
Afinal… o fim de nada era Ushuaia, apenas o momento, apenas os momentos de nós. Talvez mortos mas, também, talvez vivos, talvez só o mundo sem fim de nós, talvez pensamento, talvez delírio, talvez nada. Talvez tudo ou apenas e talvez apenas Ushuaia. Mas
Quando a saudade de ti apertou, a verdade é que ao longe não havia barcos para que nos cruzássemos, para que nos cabinássemos, talvez não houvesse gelo para quebrar, talvez apenas nós, talvez apenas corpos, e saudade, e vontade, e sorrisos inúteis de tão saborosos. E que fazer? Vivos estávamos, embora distantes. Mas – felizmente – mesmo estando não o sabíamos. Fixe… Mas
(Lembro quando ansiava pelo fim do teu vôo, achando-me o último guardião da gravidade, vai, vai, aguenta-te aí no ar, ah engenheiros do catano que conseguiram inventar um processo de manter a “carrêra” no ar, ‘bora aí, falta pouco…)
Agora passou tanto, tanto tempo, inútil, disfarçado, distante. Agora passou tempo. Agora passou tanto. E agora já não há “nós” para apresentar aos amigos incomuns, há apenas eu, tu, e a tal de saudade matematicamente unívoca. Mas
(Quando aterraste, o alívio… ‘pera aí, falta um “uffff”…)
Tudo está desfasado, não vês? O tempo, nós, os nomes (não, não sou Rui Jorge!), tudo está mal.
(Vai um gin? Em Ushuaia?)
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sexta-feira, março 23, 2012
Parêntesis
(Será que ela aceita um copo?)
(Mas quem será aquele palerma que não pára de olhar para mim?)
(E se eu me aproximasse?)
(Não acredito – será que aquele totó vem ter comigo?)
(E se eu lhe perguntasse se ela acha que os biofísicos são uma espécie em extinção?)
(Mas que coisa mais estúpida… mas deu-me vontade de rir, confesso. Deverei aceitar o copo?)
(Olha, ela aceitou, a estupidez compensa! Será que me aguento à bronca?)
(Não estou a pensar dizer-te o meu nome, tens alguma coisa contra?)
(Não, nada, absolutamente nada, desde que eu também possa continuar assim, anónimo. Pode ser?)
(Claro, até prefiro. Já agora, pode saber-se porque é que, a esta hora, ainda aqui andas?)
(Por ti! Pode ser?)
Os corpos estavam nus, abraçados, moviam-se ao ritmo certo da música que haviam ouvido – sentido? -, na cadência do amor mera e excelsamente temporário que sentiam e que sabiam existir entre eles, se calhar talvez fizessem amor, talvez dançassem, talvez tomassem banho agitando o braço do duche como se deles - humanos, carentes -, se tratasse, marcando o ritmo, marcando o desejo, suando o medo do dia seguinte mas, simultaneamente, afogando-o na coragem alcoólica do momento. E a banheira enchia e as canções do passado invadiam o momento, cada vez mais estranho, cada vez mais possuído, catártico, libertador. Como ele a amava. Como ela o amava. Mas apenas e só naquele momento único e que, portanto, passou a ser tudo o que interessava – e, mais portanto ainda, eterno. E não é que as velas se acenderam sozinhas? Portentosamente?
(Acordei. Será que ela se lembra de mim?)
(Acordei. Vou fingir que ainda durmo, pode ser que ele se vá embora. Mas será que o quero?)
(E se eu saio agora, será que a reencontro? Será isso que quero?)
(Pira-te, sacana, não vês que gostei de ti?)
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sábado, março 10, 2012
Alentejo
Havia uma nuvem.
Eles estavam sentados, deitados, numa cadeira, cama – algo com almofadas – mas estavam juntos.
E havia uma nuvem.
Juntos.
De mão dada.
(Já viste que parece mesmo um pato? Olha ali o bico.)
Apertavam as mãos e amavam-se sem corpos – melhor, como se fossem os últimos representantes da alma.
(A mim parece-me mais algo grandioso, tipo Adamastor.)
Ele deu-lhe um beijo, enquanto o silêncio do Mundo a banhava de erva e cigarras. Sem dar por isso, ganhavam a inocência há muito perdida.
(Só se for um primo muito afastado, este não mete medo a ninguém, nem àquele jacto que acabou de o trespassar!)
Sorriram.
Ela deu-lhe um beijo. De novo e de novo.
À medida que o vento soprava cada vez mais, só lhes vinha o cheiro das vacarias próximas, nada de transcendente ou sonhado ou minimamente poético. Mas o Sol aquecia-lhes as entranhas e o sangue, ferviam das mãos apertadas, ficavam mais vivos a cada beijo.
(Estou-te a dizer que é um pato!)
Havia uma nuvem. Deitaram-se nela – algo com almofadas -, abraçaram-se, adormeceram e nunca mais acordaram.
Havia o Alentejo. Uma nuvem. E um Amor enorme.
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domingo, dezembro 25, 2011
MAIS UM ESTÚPIDO CONTO DE NATAL (dedicado à minha amiga APC que, anonimamente, se esforça por alguns - mas todos os - anónimos que são Gente)
A noite era igual a todas as outras, apenas com a diferença de que lhe haviam dito que era diferente de todas as outras – afinal, sempre era Natal...
Mas ele não tinha nascido naquele dia, não conhecia ninguém que o tivesse feito mas, ao que parece, há dois mil anos atrás alguém o havia - e em estilo. Sim, porque a mãe desse, perdão, Desse-com-letra-maiúscula, não o pariu, ele é que mandou a mãe pari-lo naquele preciso e exacto dia (pumba!). Aliás, segundo as más-línguas e ao que consta, era filho do patrão e, por isso, tinha uma golden share na sua vida - contrariamente a todos nós, mortais, que não temos quaisquer acções douradas ao longo de toda a puta da nossa incógnita e miserável vida.
Enfim, ele apenas esperava a carrinha das boas acções. Que nunca mais vinha – “despachem-se, chiça!” - com um pacote de leite e tudo (luxo!). E depois adormeceria enrolado em jornais,
(cheios de notícias de que iríamos ficar ricos depois de ficarmos pobres e moribundos e inúteis e que se não quiséssemos ser pobres e moribundos e inúteis e viver na fantasia de que um dia seríamos ricos e vivos e úteis sempre nos deixavam sair do país e emigrar (luxo!) - mas, em todo o caso, que mandássemos os ordenados para cá…)
sonhando e esperando que a noite fosse igual a todas as outras. Sim, porque surpresas normalmente dão mau resultado, nomeadamente quando aparecem uns ricaços com vontade de bater em alguém, apenas como diversão alternativa à caça à perdiz.
Adormecer. Era preciso adormecer. Que o dia já se havia pirado há muito e a noite, com o seu harém de estrelas, viera – apenas e só - para o embalar. Havia que aproveitar, então. Nem que fosse para esquecer que, no dia seguinte, haveria um tempo cheio de horas e minutos e segundos e chatices do género, fazendo-o explodir a fome desde as entranhas.
Finalmente chegaram. Cumprimentou os tipos da volta, naquele dia particularmente afectuosos. Repetiram-lhe a palavra “acreditar” até à exaustão, até que ele confessasse que leite era melhor que rum – que não é. Bebeu o leite, imaginando-se um lorde inglês. Tapou-se com os jornais, versão culta dos lençóis de seda que nunca havia experimentado. Tentou
Adormecer. Para esquecer a possibilidade de, no dia seguinte, aparecerem uns fiscais da ASAE dizendo que não tinha seguido as (mui) exactas normas da depressão e que, como tal, estava multado.
“Mas porque é que estas lágrimas me perseguem?”, pensou. E elas escorriam, continuavam a escorrer, indiferentes à estranha e absurda felicidade que, naquele momento, sentia. Puta de Natal!
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sexta-feira, dezembro 09, 2011
A rosa
Quando ele descobriu que havia rosas de quatro cores e não apenas uma única e exclusiva cor-de-rosa, veio-lhe à cabeça a hipótese de que sua amada poderia não ser apenas sua mas apenas sua obsessão, eventualmente amante de outro tempo, de outro alguém, de uma outra falta ou desejo maior. Ele, que tanto a amava, só queria que ela o amasse. Mas a verdade é que nem isso (lhe) chegava.
Quando ela descobriu que ele era obcecado por si, não apenas por causa da sua própria obsessão pelas rosas vermelhas (que tanto o fazia rir pelo daltonismo da coisa) mas, se calhar, pela cor avermelhada do seu cabelo naquele estranho corte de homenagem a Rod Stewart (ou por qualquer outra coisa ainda mais estranha), veio-lhe à cabeça a hipótese de afinal, naquela noite, não abraçar a noite sozinha, como em todas as outras noites. Ela só queria voar. Mas a verdade é que nem isso (lhe) chegava.
Quando os seus olhos dançaram pelo cabelo dela, pintado e não naturalmente louro, cor-de-vinho ou avermelhado ou lá o que seria, mesmo assim ele estupidamente pensou que a poderia “domesticar”, torná-la “normal”, na acepção que as pessoas “normais” dão à normalidade – ou seja, serem minimamente estandardizadas e iguais a si próprias. Mas…
Quando depois ela dançou, tornou-se deusa, tornou-se flor. Sem cor ou cores, sem tempo, sem amarras. Sem esperas. Tornou-se ela, tornou-se – aí sim - obsessão. Já não havia tempo nem margem para nada, havia que a aceitar como era, com calças feitas de cortinados, com aquela saudável e invejável ignorância da realidade mais básica, até mesmo com aquele total desprendimento de tudo – que tanto o chocava e que, simultaneamente, tanto o atraía.
Quando depois foram para casa dele, deitaram-se, despiram-se, entrelaçaram-se, despediram-se, “até amanhã”. Mas o beijo na face fez-se beijo na boca e o beijo na boca fez-se corpo e o corpo fez-se desejo e os corpos assumiram o desejo de tudo o que tanto queriam e desejavam. Então o chão tornou-se nuvem os cheiros tornaram-se desejo o cor-de-rosa tornou-se cor-de-fogo e trocaram saliva e trocaram suor e trocaram de corpos e viraram-se totalmente do avesso ao trocarem mais e mais outra vez de corpo quando a noite se fez cor da madrugada quando a madrugada se pintou do rosa do desejo, do rosa do abraço, do rosa do beijo, do rosa do Amor. Ou seja, das quatro cores do rosa.
(Indiferente a tudo, a verdade é que ele se apaixonou definitivamente quando descobriu que, quando ela dançava, havia rosas dentro dela – melhor, que ela mesma era uma rosa de quatro, de todas as cores. E, desde esse mágico instante, não mais deixou de a amar. Como a rosa que, efectivamente, ela era.)
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